Escrito por: Peter Lovesey
Traduzido por: Murilo Jardelino
Quando Dorando Pietri, esgotado, cruzou a linha de chegada da maratona dos Jogos Olímpicos de 1908 ajudado pelos fiscais da prova, sir Arthur Conan Doyle, o criador de Sherlock Holmes, estava lá como correspondente do tabloide britânico Daily Mail. Peter Lovesey explora como o drama e a emoção desse evento levaram Conan Doyle a se envolver intimamente com o desenvolvimento das Olimpíadas modernas.
Houve muitas competições olímpicas emocionantes, mas a corrida de 1908 que ficou conhecida como “a maratona de Dorando” passou para a História como a mais dramática. A imagem do corredor italiano exausto, auxiliado na linha de chegada — e por isso desclassificado —, aparece em quase todos os relatos sobre os Jogos Olímpicos. Foi um evento extraordinário. A rainha Alexandra ficou tão emocionada com a cena angustiante que entregou um troféu de consolação a Dorando Pietri. Irving Berlin escreveu uma canção chamada Dorando. O rei batizou um de seus cavalos em homenagem ao corredor. Ali nascia uma nova febre que atingiria muitas pessoas: correr maratonas.
Agora, vamos ao boato. Por muito tempo acreditou-se que sir Arthur Conan Doyle, o criador de Sherlock Holmes, tivesse sido um dos fiscais que ajudaram Petri no final da maratona de 1908, causando sua desclassificação sumária. Doyle chegou até a ser identificado como uma figura corpulenta, de chapéu panamá, retratada ao fundo de uma das mais famosas fotografias dos Jogos Olímpicos. Infelizmente para os românticos, essa história não é verdadeira. Os dois oficiais ao lado do atleta são Jack Andrew, diretor de prova responsável pelo gerenciamento da pista, de posse de um megafone, e o dr. Michael Bulger, médico-chefe. O homem ao fundo — visto ao lado de Pietri em outras fotos — é provavelmente outro membro da equipe médica. Conan Doyle estava nas arquibancadas.
Sua reportagem no Daily Mail em 25 de julho de 1908 deixa isso claro:
“De repente, ele desmoronou de novo. Mãos gentis o salvaram de uma forte queda. Ele estava a poucos metros de onde eu estava sentado. Em meio a figuras inclinadas e mãos crispadas, vislumbrei o rosto pálido e abatido, os olhos vidrados e inexpressivos e os cabelos longos e negros escorridos na testa.”
Conan Doyle fora contratado por lorde Northcliffe para redigir uma matéria especial sobre a corrida. “Eu não costumo fazer trabalhos jornalísticos,” disse em suas memórias, “mas, por ocasião dos Jogos Olímpicos de 1908, fui convencido a escrever sobre a maratona para o Daily Mail em troca de um excelente lugar nas arquibancadas”. As cenas quase melodramáticas o afetaram profundamente. “É horrível, e ainda assim fascinante, essa luta entre um propósito e um quadro de total exaustão.”
Até aquele momento, era uma cena inédita, embora outras parecidas viessem a ocorrer em maratonas no futuro. Com uma previsão extraordinária, Conan Doyle encerrou sua matéria assim: “O formidável desempenho do italiano jamais poderá ser eliminado de nossos registros esportivos, independentemente de qual seja a decisão dos jurados.”
Há quem diga que o troféu de consolação dado ao atleta no dia seguinte pela rainha Alexandra fora ideia de Conan Doyle, mas isto é outra distorção da realidade. Na verdade, a contribuição de Conan Doyle foi financeira: ele criou um fundo para arrecadar verbas para Dorando Pietri. Uma carta de sua autoria publicada no Daily Mail ao lado da reportagem declarava:
“Tenho certeza de que nenhuma recompensa pessoal possa minimamente consolar Dorando pela derrota decorrente de sua desclassificação. Ainda assim, estou certo de que muitos que viram seu esplêndido esforço no estádio, um esforço que quase tirou sua vida, gostariam de saber que ele leva alguma lembrança de seus admiradores na Inglaterra. Eu ficaria muito feliz em contribuir com cinco libras para esse fundo se alguma das autoridades do Estádio de White City consentissem sua organização.”
Ninguém pareceu se incomodar com a possível mácula no status de amador de Dorando. A coleta resultou na substancial quantia de 308 libras. Os leitores do jornal foram informados de que o dinheiro seria usado para que o bravo corredor pudesse abrir uma padaria em seu próprio vilarejo. No entanto, se os moradores realmente tivessem confiado a ele a produção do pão, com certeza ficariam desapontados. Ele se profissionalizou e investiu o valor na tal febre de enfrentar maratonas desencadeada por seu desempenho nos jogos de 1908. Durante boa parte do ano seguinte, ele esteve nos Estados Unidos, retornando à Itália apenas em maio de 1909. Suas viagens duraram até 1912.
Para Conan Doyle, aquela tarde quente no estádio de White City foi uma epifania que o convenceu sobre o significado internacional do movimento olímpico. Como desportista completo, ele próprio era quase um atleta olímpico: entre 1900 e 1907, jogou críquete no time MCC, sendo um útil e habilidoso arremessador lento, e certa vez conseguiu derrubar o wicket (varetas fincadas no solo) do melhor batedor do século, W. G. Grace; foi um dos fundadores do Portsmouth Football Club (1884), atuando no gol e na defesa até os 44 anos; chegou a ter handicap dez no golfe; e em 1913 chegou à terceira rodada do campeonato de snooker amador britânico. Seu conhecimento de boxe, em especial do sistema prize-ring, é evidente em suas obras, particularmente em Rodney Stone e em O mestre de Croxley. Além disso, dá-se a ele com frequência os créditos por popularizar o esqui durante os anos em que passou na Suíça. Há em Davos uma placa comemorativa por sua contribuição à história do esqui suíço.
Em 1910 aceitou a presidência da English Amateur Field Events Association (AAA). A preocupação da Grã-Bretanha com as modalidades mais requintadas de atletismo deixou a nação muito atrás dos EUA e dos países nórdicos em relação aos esportes de salto e arremesso. O desempenho da Grã-Bretanha nos Jogos Olímpicos de Estocolmo de 1912, com apenas duas medalhas de ouro individuais e cinco em esportes coletivos, foi um choque para a nação que havia dominado os jogos no século anterior. Para F. A. M. Webster, “uma grande onda de indignação popular varreu o país, e (…) as atenções se voltaram para sir Arthur Conan Doyle, pela posição que ocupava”. O próprio Conan Doyle nos diz que, no início do verão de 1912, lorde Northcliffe enviou um telegrama “que me deixou mais perturbado do que qualquer outra mensagem que já recebi”. Northcliffe (que em 1908 havia levantado cerca de 12 mil libras para salvar os Jogos Olímpicos de Londres) disse que Conan Doyle seria o único homem na Grã-Bretanha capaz de reunir as partes discordantes e realizar um esforço conjunto para restaurar o espírito olímpico da nação.
Conan Doyle era um grande patriota. Supõe-se que ele tenha recebido seu título de cavaleiro por causa de seu sucesso literário, mas Sherlock Holmes não teve nada a ver com isso. A homenagem foi dada principalmente em reconhecimento ao livreto muito traduzido do escritor, The War in South Africa: Its Causes and Conduct (A guerra na África do Sul: causas e conduta), uma resposta britânica às críticas internacionais sobre o papel da nação na Guerra dos Bôeres.
Ele começou escrevendo para o The Times (em 18 de julho de 1912) sugerindo que, no futuro, a Grã-Bretanha deveria enviar uma equipe do Império Britânico para as olimpíadas, pois “não poderia haver uma lição prática mais refinada sobre a unidade do Império do que uma equipe lutando pela vitória sob a mesma bandeira”. Doze dias depois veio uma proposta mais completa, com o reconhecimento de que “liberal funds” (recursos da iniciativa privada) eram necessários para formar, equipar e treinar essa equipe. Jogos anuais ou bianuais deveriam ser realizados seguindo o modelo olímpico para acostumar os atletas às distâncias das provas e a “modalidades incomuns”, como o disco e o dardo. Os Jogos Olímpicos deveriam ter prioridade sobre competições tradicionais britânicas, como Bisley, Wimbledon e Henley. Suas propostas estavam à frente de seu tempo: “A equipe deve ser reunida em centros especiais de treinamento pelo maior tempo possível antes dos Jogos e devem ter aconselhamento sempre disponível para ajudá-los”.
A resposta foi insatisfatória. Alguns dos próprios jornais de Northcliffe atacaram a ideia de investir dinheiro no esporte amador. Contudo, Conan Doyle não se deixava silenciar. Em outra carta ao The Times (em 8 de agosto de 1912), apelou a todos os interessados para que “deixassem o passado ser passado e concentrassem esforços no futuro.” E como nunca fugia de polêmicas, ressaltou que o British Olympic Council (Comitê Olímpico Britânico), com cerca de cinquenta membros, era grande demais para tomar decisões. Em vez disso, ele propôs “um núcleo com quatro ou cinco representantes oriundos do comitê atual, e outros tantos selecionados de fora”. Ele achava que só então estariam prontos para atrair o público necessário para angariar fundos.
Em março de 1913, o novo Comitê Financeiro Olímpico entrava em vigor, e ele era um dos membros. Os outros eram: o presidente J. E. K. Studd, jogador de críquete e fundador do Politécnico de Londres; H. W. Forster, membro do Parlamento, futuro Governador Geral da Austrália e jogador de críquete de primeira classe; Edgar Mackay, pioneiro do barco a motor; Bernard J. T. Bosanquet, jogador de críquete da seleção nacional, hoje mais conhecido por ter inventado o “googly”, um movimento do críquete; Arthur E. D. Anderson, um atleta olímpico de 1912; Arthur Robertson, outro atleta olímpico; Theodore Cook, o esgrimista olímpico; Percy Fisher, representando o AAA; e J. C. Hurd, representando os nadadores.
Infelizmente para os arrecadadores de fundos, o estado do mercado financeiro durante a Guerra dos Balcãs, nas palavras de Conan Doyle para o Daily Express (em 24 de maio de 1913), resultou em “um momento muito inoportuno para persuadir o público a fazer doações”. O projeto ficou suspenso. Em julho, o Daily Express queria saber quando a campanha seria lançada. “Uma solicitação intempestiva de verbas seria desastrosa. (…) O mercado financeiro ainda está desfavorável”, respondeu Conan Doyle (em 4 de julho de 1913).
Em seguida, tomou uma decisão infeliz e saiu de férias, perdendo uma reunião crucial. Em sua ausência, o comitê lançou a campanha, não por dez mil libras, como planejara Conan Doyle, mas por cem mil. “Fiquei horrorizado”, escreveu ele em Memories and Adventures, “a soma era absurda, e de uma hora para outra todos nos colocaram como os responsáveis por profissionalizar o esporte. (…) Fiquei em uma posição muito difícil. Se eu protestasse naquele momento, poderia arruinar a campanha.”
As reações vieram imediatamente. Frederic Harrison, chefe do movimento positivista na Grã-Bretanha, escreveu (de maneira muito negativa) ao The Times (em 26 de agosto de 1913): “O caso todo cheira a uma manipulação profissional para arrecadar grandes somas… Essa avidez por medalhas olímpicas sem valor é provavelmente outra enganação ‘profissional’ — com todos esses anos de treinamento especializado. Eu preferiria ver a Grã-Bretanha se recusar a participar dessas competições, pois não gosto dos termos e do modo como são realizadas.”
A resposta de Conan Doyle no The Times (em 27 de agosto de 1913) foi uma carta com argumentos convincentes, ressaltando detalhes do plano e os requisitos práticos para melhorar os padrões nacionais de educação física. Ele conclui:
“Se o argumento do Sr. Harrison é de que nunca deveríamos ter ido aos Jogos Olímpicos, deve haver muitos que concordam com ele. Mas, sendo as coisas como são, peço a ele que reconsidere as possibilidades que nos apresentam. Uma delas é desistirmos diante da derrota e impedir as colônias de colocarem nossa bandeira no topo sempre que puderem. Como bom esportista, tenho certeza de que o Sr. Frederic Harrison não toleraria isso. Uma segunda é continuarmos com nossos métodos atuais, desorganizados e ineficazes e, do terceiro lugar que ocupamos no momento, cairmos cada vez mais.”
Havia um risco real de que os críticos sabotassem o plano e exigissem a retirada da Grã-Bretanha das próximas Olimpíadas. Na mesma edição do The Times foi publicada uma carta de Nowell Smith, o diretor da Sherborne, tradicional escola da elite britânica. Depois de conversar com muitos amantes do esporte, ele diz: “Somos apenas britânicos comuns, e além disso, eu receio, muito antiquados; achamos que esses pseudo jogos olímpicos modernos são ‘bobagens’, e os anúncios de jornal com o objetivo para arrecadar cem mil libras para comprar vitórias, realmente degradantes.”
A controvérsia durou semanas. O The Times dedicou um artigo importante ao tema do profissionalismo velado nas Olimpíadas, destacando que mesmo os mais amadores dos esportes, como o remo universitário ou o críquete estudantil, eram patrocinados de alguma maneira. De forma ainda mais subversiva, a revista de humor Punch publicou uma matéria muito hostil aos Jogos Olímpicos.
Conan Doyle encarou a questão no The Times (em 13 de setembro de 1913): “Gostaria de fazer uma pergunta e receber uma resposta definitiva de todas essas pessoas que estão tornando nossa tarefa olímpica mais difícil, incluindo o Sr. Punch. Eis a questão: vocês estão preparados para desistir completamente dos Jogos de Berlim?”
Ele persuadiu seu presidente, J. E. K. Studd, de que o jeito certo de lidar com essa crise seria convidar os críticos para um hotel em Londres e debater a questão da participação da Grã-Bretanha. Esse encontro foi um momento decisivo. Studd e Conan Doyle falaram por muito tempo e com honestidade. O tempo, argumentaram, corria contra eles. As contribuições eram escassas (até 18 de outubro, apenas 9,5 mil libras haviam sido coletadas). Mas a saída dos Jogos colocaria a Grã-Bretanha no papel de má perdedora. Eles admitiram que a meta de cem mil libras era um “valor exorbitante”. Studd, falando só por si, disse que só havia aceitado a presidência na esperança de que “se for bem sucedido, o trabalho do comitê permitirá à Grã-Bretanha deixar de participar de futuras competições olímpicas sem perda de dignidade ou prestígio, caso o país assim o deseje”. Conan Doyle discordou desse ponto de vista e disse algo parecido com o que havia escrito em um prefácio mais ou menos na mesma época: “Nenhum departamento da vida nacional funciona de forma independente, e uma capitulação assim no esporte, que envolveria a saída dos Jogos Olímpicos, teria um efeito debilitante em todos os campos de atividade.”
Conversas tão diretas assim eram raras. A imprensa concordou que o projeto merecia seu apoio, mas o estrago já estava feito. No final de novembro de 1913, Conan Doyle admitiu: “O público parece não ter interesse na questão. (…) A menos que haja uma ajuda rápida e generosa, o Comitê será dissolvido, e a organização laboriosamente construída durante o último ano será perdida. As próximas semanas serão decisivas.”
O assunto, no entanto, foi decidido por eventos fora do controle de esportistas e de escritores.
Quando a Primeira Guerra Mundial terminou e a participação da Grã-Bretanha nos Jogos Olímpicos de 1920 foi debatida, Conan Doyle já não estava na linha de frente. Ele dedicava suas energias a outra causa — o espiritualismo. Infelizmente, a experiência com angariação de fundos o deixara amargurado. “Este assunto ocupou mais de um ano da minha vida e foi a coisa mais estéril com que eu já me ocupei, de que nada resultou, e em nenhum momento recebi uma só palavra de agradecimento de qualquer ser humano. Depois disso, deixei de me importar com os telegramas de Northcliffe.”
Embora de maneira modesta, o esforço valeu a pena. Um “encontro de esportes olímpicos” sobre distâncias métricas e a inclusão daquelas modalidades de campo “anormais”, o disco e o dardo, foi realizado na pista do Crystal Palace em 1913. E em fevereiro de 1914, o primeiro treinador nacional remunerado da Grã-Bretanha, Walter Knox (um conhecido profissional com experiência no Canadá e nos EUA) foi nomeado com um salário de 400 libras do fundo olímpico. A AAA estendeu seus campeonatos para dois dias e adicionou os 400 m com barreiras, o salto triplo, o disco e o lançamento de dardo em seu programa. Algumas regras importantes foram estabelecidas.
Peter Lovesey
Peter Lovesey é um romancista, mais conhecido como criador do policial vitoriano, ‘Cribb’, e um dos principais historiadores do atletismo da Grã-Bretanha, autor da História Centenária Oficial da Associação Atlética Amador (1979). Seu site: peterlovesey.com.
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Murilo Jardelino
Tradutor.