Escrito por: Philip Seargeant
Traduzido por: Monique D´Orazio
R. R. Tolkien começou a escrever A queda de Gondolin ainda de licença médica durante a Primeira Guerra Mundial, há mais de cem anos. É a primeira história do que viria a ser seu lendário O Senhor dos Anéis e a mitologia que o sustenta. Porém, por trás da ficção havia seu interesse por outro ato épico da criação: a construção de línguas imaginárias.
Naquele mesmo ano, do outro lado da Europa, Ludwik Zamenhof morria em sua Polônia natal. Zamenhof também era obcecado pela invenção de línguas e, em 1887, apresentou um livro com sua própria criação. Publicado sob o pseudônimo de Doktoro Esperanto, com o tempo acabou se tornando o nome da língua em si.
A longa história da construção de línguas imaginárias, as conlangs, remonta ao século 12 — Tolkien e Zamenhof são dois de seus proponentes mais bem-sucedidos. No entanto, seus objetivos eram muito diferentes e, de fato, apontam para visões opostas do que a linguagem em si realmente é.
Zamenhof, um judeu polonês crescido em um país onde a animosidade cultural e étnica era abundante, acreditava que uma língua universal seria a chave para a coexistência pacífica. Embora a linguagem seja o “principal impulsor da civilização”, ele escreveu, “diferentes idiomas são causa de antipatia, e até mesmo de ódio, entre os diferentes povos”. Seu plano era conceber algo que fosse simples de aprender, desvinculado de nações e culturas, com o intuito de unir a humanidade.
No que diz respeito a “línguas auxiliares internacionais”, o esperanto tem sido muito bem-sucedido. Embora seja difícil elaborar estimativas exatas, hoje em dia provavelmente cerca de um milhão de pessoas a usam e, em termos de número de falantes, apresenta uma popularidade consistente ao longo de sua história. O esperanto possui um extenso corpo de literatura nativa, há inclusive um museu na China dedicado exclusivamente a ele. No Japão, por outro lado, Zamenhof chega a ser homenageado como deus por uma seita do xintoísmo que utiliza o esperanto. No entanto, Zamenhof nunca chegou perto de alcançar seus sonhos de harmonia mundial. No tempo de sua morte, com a Europa sendo destruída pela Primeira Guerra Mundial, seu otimismo se transformou, em grande medida, em desilusão.
Línguas fantásticas
O próprio J. R. R. Tolkien era um defensor do esperanto, pois acreditava ser uma ferramenta capaz de unir a Europa do pós-Guerra. Porém, seu interesse pessoal na invenção de línguas era muito diferente. O objetivo não era melhorar o mundo em que vivemos, mas criar outro inteiramente ficcional. Ele se referia a isso como seu “vício secreto” e explicava que seu objetivo era estético e não pragmático. Era o deleite criativo na combinação de sons, formas e significados de maneira totalmente original.
Como parte do processo de dar substância às suas línguas inventadas, Tolkien precisava criar uma mitologia. Como entidades vivas e que evoluem, as línguas derivam sua vitalidade das culturas dos povos que as utilizam. Esse foi o embrião que levou à criação do universo ficcional de Tolkien. “A invenção das línguas é a fundação”, ele escreveu. “As ‘histórias’ foram criadas mais para conferir um mundo às línguas — e não o contrário.”
E quanto às línguas artificiais hoje em dia? Cem anos após a morte de Zamenhof, em muitos aspectos a arte da construção linguística continua popular. Um dos exemplos atuais mais célebres é o Dothraki, de Game of Thrones.
Criado por David J. Peterson para a versão televisiva do romance que inaugura a série de George R. R. Martin, Crônicas de Gelo e Fogo, sua inspiração pode ser rastreada até Zamenhof e Tolkien.
Ao fazer um curso de esperanto na universidade, Peterson se interessou por línguas artificiais, enquanto que Martin, por sua vez, já declarou como sua saga é, de muitas formas, uma resposta a O Senhor dos Anéis. Em forma de tributo, ele incorpora várias pequenas referências linguísticas do mundo de Tolkien: warg, por exemplo, alguém que pode projetar sua consciência na mente dos animais, é uma palavra que Tolkien usa para uma espécie de lobos.
Portanto, de modo geral, nos resta concluir que foi a tradição de criação de mundos fantásticos iniciada por Tolkien que permaneceu. Há, talvez, duas razões para isso.
A primeira é linguística. Paradoxalmente, o conceito de Tolkien está mais próximo de como as línguas de fato funcionam no mundo real. Suas línguas élficas, da forma como são retratadas em sua obra, são entidades vivas e em constante mutação, que evoluem para refletir a cultura das comunidades que as falam. A ideia de uma língua auxiliar internacional, por outro lado, é fornecer uma base estável, que pode ser facilmente aprendida por qualquer pessoa. Todavia, as línguas humanas são sempre dinâmicas. Por isso o esperanto tem uma falha fundamental intrínseca em sua própria concepção.
A segunda razão? Talvez hoje em dia fiquemos mais felizes de nos dedicar à criação de mundos fantásticos do que a buscar maneiras de consertar a realidade.
Philip Seargeant
Philip Seargeant é docente sênior em Linguística Aplicada, The Open University.
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Monique D´Orazio
Tradutora.