Escrito por: Jamilly Santos
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Franz Kafka foi um escritor nascido em 1883 em Praga. Conhecido principalmente por obras como A metamorfose e O processo, atualmente é reconhecido como um dos maiores escritores da Literatura Moderna. Durante a sua vida, ocorreram muitas mudanças no campo social, político e econômico. Diretamente ligado ao crescimento do espaço urbano e com as inovações tecnológicas, o capitalismo foi ganhando um espaço cada vez maior. E é claro que todas essas transformações não repercutiram apenas socialmente, em uma perspectiva coletiva, mas também nas perspectivas individuais, como consequência. Assim, incorporando as cidades com a sua nova forma de produzir — acelerada, impessoal e lucrativa — o capitalismo também criou uma nova forma de sentir, de pensar e de se relacionar com os outros: “o indivíduo se tornou um mero elo em uma enorme organização de coisas e poderes que arrancam de suas mãos todo o progresso, espiritualidade e valores, para transformá-los de sua forma subjetiva na forma de uma vida puramente objetiva” (SIMMEL, 1973, p. 23). E a obra Kafka, passando por esse processo justamente por também se inserir nessa realidade sociopolítica, corresponde e incorpora isso que se conhece hoje como modernidade. Praga, apesar de ser à época de Kafka uma cidade de tamanho mediano, passava por um rápido processo de industrialização no contexto da Boêmia e, além disso, o trabalho de Kafka no Instituto de Seguros para Acidentes de Trabalhadores no Reino da Boêmia e “seus escritos de repartição” mostram o quão consciente estava em relação às implicações do avanço da industrialização e da guerra. Feita essa breve contextualização como um modo de localizar o leitor, a seguir veremos uma sistematização breve do que se tem dito sobre a relação entre Kafka e a linguagem para depois seguirmos para uma análise talvez mais ampla socialmente.
No campo da fortuna crítica, a relação entre Kafka e a linguagem é amplamente comentada e produz relações muito interessantes. Muitos vão comentar, por exemplo, sobre a falta de espanto aliada a uma naturalidade que não faz sentido diante de todo um contexto visto como absurdo. Modesto Carone, um dos críticos da obra de Kafka mais importantes no Brasil, diz, por exemplo, que é justamente a existência de uma justaposição direta entre esferas normalmente incompatíveis que torna a sua narrativa grotesca (2009, p. 18). Mais do que isso, Carone conclui também que apesar de colidir com a expectativa do leitor sobre o que é realismo e de diferir em muitos aspectos de escritores clássicos do séc. 19, Kafka “mostra as coisas como elas são e as coisas são percebidas pelo olhar alienado” (Ibid, p. 45).
Günther Anders, outro crítico de Kafka internacionalmente conhecido, indo por esse mesmo caminho, afirma que a partir dessa escrita “limpa e precisa” que “sempre tende ao protocolo”, Kafka constrói frases que “assustam pela precisão” (ANDERS, p. 91) e que, nesse sentido, Kafka, antes de ser “estetizante, santo ou sonhador” ou “forjador de mitos ou simbolista”, é, acima de tudo, “um fabulador realista” (Ibid, p. 16). Desta maneira, o método de Kafka afastar ou deslocar a fisionomia de seu mundo — e, com isso, apresentar uma realidade inverossímil que, contra a expectativa, é narrada com precisão na linguagem, seguindo uma linha tênue com a indiferença — pode ser considerado uma ferramenta que expõe a loucura do nosso próprio mundo:
Kafka desloca a aparência aparentemente normal do nosso mundo louco, para tornar visível sua loucura. Manipula, contudo, essa aparência louca como algo muito normal e, com isso, descreve até mesmo o fato louco de que o mundo louco seja considerado normal.” (Ibid, p. 15)
Um bom exemplo para elucidar tais retratos são as cenas iniciais de A metamorfose, em que Gregor Samsa, sem mais nem menos, acorda e se percebe “em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso” (KAFKA, 2002, p. 6). Tal como apontado pelos comentadores, é possível perceber no texto tanto uma falta de surpresa quanto uma automatização muito particular em que, ao invés de se esboçar alguma reação em relação a sua mudança corporal, reclama: “que profissão cansativa eu escolhi” e, continua, “acordar cedo assim deixa a pessoa completamente embotada (…) o ser humano precisa ter seu sono (…) por enquanto, porém, tenho de me levantar, pois meu trem parte às cinco” (Ibid, p. 7). Na cena seguinte, ainda, ao olhar para o relógio e perceber seu atraso, exclama “Pai do céu!” e prossegue:
E agora, o que deveria fazer? (…) mesmo que pegasse o trem não podia evitar uma explosão do chefe (…) E se anunciasse que estava doente? Mas isso seria extremamente penoso e suspeito, pois durante os cinco anos de serviço Gregor ainda não tinha ficado doente uma única vez. Certamente o chefe viria com o médico do seguro de saúde, censuraria os pais por causa do filho preguiçoso e cercearia todas as objeções apoiado no médico, para quem só existem pessoas inteiramente sadias, mas refratárias ao trabalho. E neste caso estaria tão errado assim? Com efeito, abstraindo-se de uma sonolência realmente supérflua depois de longo sono, Gregor sentia-se muito bem (…) (Ibid, p. 8)
Nesse trecho, notar a indiferença, a naturalidade, de quem, ao acordar inseto, pensa no incômodo que é levantar cedo para ir trabalhar e que, nessa perspectiva, a grande quebra de expectativa parece ser ter perdido o trem e, com isso, correr o risco de sofrer alguma censura de seu chefe. Há, ainda, esse narrador que relativiza a situação, “e neste caso estaria [o chefe] tão errado assim?” e, continua, “abstraindo-se de uma sonolência (…), Gregor sentia-se muito bem” (Ibid, p. 8). Como se não bastasse, tudo é narrado como um fato irredutível. Nesse sentido, o objeto estranho — no caso, toda a ocasião de ser transformado em inseto — não só é visto com naturalidade; mas também como uma realidade imutável. A esse respeito, em uma de suas aulas sobre A metamorfose, Vladimir Nabokov, que além de escritor era também entomólogo, comenta especulando, após analisar as características físicas da criatura, que “curiosamente, Gregor besouro nunca descobriu que tinha asas atrás da carapaça dura de suas costas” (informação verbal).
Mais do que isso, esse tipo de análise não fica restrita a um texto específico de Kafka — no caso aqui, A metamorfose — mas em sua obra de modo geral. Em O processo, por exemplo, K., em seu aniversário de trinta e um anos, é detido em seu quarto logo ao acordar por dois policiais. Como se tal imagem já não fosse suficientemente absurda, K. nota que eles parecem ter arbitrariamente comido o que era para ter sido o seu café da manhã e, sem nem ao menos saber o motivo, descobre que está sendo processado. Apesar de inúmeras tentativas, K. passa toda a narrativa sem saber o motivo de seu processo e, ao contrário de sua insistência em resolver ou pelo menos suavizar o problema, tudo o que faz apenas agrava a situação com um todo.
Abrindo espaço para outro exemplo do absurdo na obra de Kafka, em O castelo, o protagonista da história, K., diz que foi contratado por um conde para prestar serviços em sua propriedade. Apesar disso, em nenhum momento o protagonista consegue entrar no castelo e muito menos estabelecer contato com o seu empregador. Além disso, tudo em volta é regido por meio de imagens que ao mesmo tempo fascinam e também perturbam, criando uma teia de relações que também poderíamos dizer absurda: há a figura dos dois ajudantes que, em atitudes infantis, seguem K. para onde quer que vá; há a ex-garçonete Leni que, deixando o misterioso Klaam, se envolve de uma maneira estranhamente submissa com o agrimensor; há o prefeito doente que recebe K. em sua própria cama e, por mais que procure em suas papeladas, que inclusive chegam ao ponto de cobrir “a metade do quarto” (KAFKA, 2000, p. 96), não é capaz de achar o auto do agrimensor. Mais do que isso, o livro em si segue uma linearidade que parece tender ao absurdo: o narrador vacila do discurso indireto para o discurso indireto livre e constrói todo um labirinto na trama difícil de ser visualizado. O leitor, a todo momento, se questiona da veracidade dos acontecimentos: aquilo aconteceu? Se sim, como é possível ter acontecido? Será que isso não está devidamente explicado? Aconteceu exatamente daquela maneira? E esse movimento narrativo incessante de sempre ir e vir acaba não chegando em lugar nenhum. E não estaria aí algum traço de absurdo?
Na colônia penal, novela de Kafka talvez não tão conhecida quanto os outros textos aqui já citados, não fica de fora em relação aos seus traços de absurdo. Em uma primeira observação, trata-se de um texto de figuras sem nome. Nesse sentido, a narrativa se passa em um espaço não-denominado que é cenário para as ações de protagonistas também sem nome. Mais do que isso, esses protagonistas são colocados a partir das funções por eles realizadas: explorador, comandante, oficial, prisioneiro, soldado. É curiosa, ainda, a posição em que cada personagem se encontra: sem ao menos ser julgado por seu hipotético crime, o condenado “é posto de bruços” sobre o algodão, “naturalmente nu” (KAFKA, 1948, p. 33). Um tampão de feltro é, literalmente, enfiado na boca do condenado de modo a “impedir que ele grite ou morda a língua” (Ibid, p. 33). Caso ele se mexa, para tentar liberar a sua boca, as correias do pescoço “quebram sua nuca” (Ibid, p. 33). Reparar, ainda, nos gestos que, em um primeiro momento talvez sejam imperceptíveis e que, embora impessoalizados, possuem o poder da morte: “quando, a um sinal do oficial, o soldado, com uma faca, lhe cortou por trás a camisa e as calças, de tal modo que elas caíram” (Ibid, p. 45, grifo meu). Há nesses gestos uma camada de violência muito explícita que se contrapõe com o que o oficial diz ser uma sentença que “não soa severa” (Ibid, p. 36, grifo meu); ou com a narrativa do oficial que conta a despreocupação, quase alívio, sentido pelas pessoas ao saberem que as sentenças estavam sendo realizadas; que a justiça, portanto, estava sendo praticada: “todos sabiam: agora se faz justiça” e “como banhávamos as nossas faces no brilho dessa justiça finalmente alcançada e que logo se desvanecia” (Ibid, p. 50). Há, aqui, sentidos aparentes deslocados: o que é criado pela expectativa não é contemplado pelo real; o que se chama de justiça parece pior que o que, a priori, seria o crime. São gestos desproporcionais.
De modo semelhantemente absurdo, em Um relatório para uma academia, conto de Kafka, é uma narrativa que transmite em primeira pessoa a história de Pedro Vermelho que apresenta uma conferência a um público acadêmico. O tópico de sua conferência, apesar da sugestão do título de que se trataria de algo supérfluo e banal — em razão do uso do artigo indefinido: “Um Relatório para uma Academia” —, narra como de sujeito-macaco ele se transforma em sujeito-humano. Trata-se, portanto, de um fato extraordinário. Sobre isso, no entanto, ele expõe a impossibilidade de reproduzir fielmente a sua própria história, tanto por estar separado há cinco anos da sua “condição de símio”, como por um problema próprio da linguagem: “naturalmente só posso retraçar com palavras humanas o que então era sentido à maneira de macaco e em consequência disso cometo distorções” (KAFKA, 1999, p. 63). Parece haver aqui uma insegurança em narrar a sua própria história; ou pelo menos uma incapacidade da linguagem humana em transmitir o que de fato aconteceu. Somado a isso, há uma naturalidade acompanhada de uma descrição pormenorizada, objetiva e extremamente visual que transforma as situações de violência em algo banal/carnal; e isso é estranho quando pensamos que ele foi o sujeito passivo, o agredido, da agressão. Ou seja, reafirmando a posição dos comentadores, não parece que há algum julgamento ou mesmo sentimento pelo que está sendo narrado: é apenas uma descrição que segue o que é indiferente, o que gera uma quebra de expectativa:
Depois daqueles tiros eu acordei (…) numa jaula na coberta do navio a vapor da firma Hagenbeck. O conjunto era baixo demais para que eu me levantasse e estreito demais para que eu me sentasse. Por isso fiquei agachado, com os joelhos dobrados que tremiam sem parar, na verdade voltado para o caixote, uma vez que a princípio eu provavelmente não queria ver ninguém e desejava estar sempre no escuro, enquanto por trás as grades da jaula me penetravam na carne. (Ibid, p. 62)
Com isso, entende-se que é possível, a partir da linguagem e considerando as informações contextuais previamente apresentadas, traçar uma relação da obra de Kafka com o que se conhece como moderno. Não à toa, o teórico Günther Anders classifica Kafka como um “fabulador realista” (ANDERS, 2007, p.16). Nesse sentido, faz uma análise material e propõe que, na realidade, o método de colocar o espantoso como algo despojado de espanto, é completamente realista; sendo a obra de Kafka, portanto, apenas uma demonstração literária do que acontece na realidade:
Milhares de vezes o homem de nossos dias esbarra em aparelhos cuja condição lhe é desconhecida e com os quais só pode manter relações de estranhamento, uma vez que a vinculação deles com o sistema de necessidades dos homens é infinitamente mediada: pois o estranhamento não é um truque do filósofo ou do escritor Kafka, mas um fenômeno do mundo moderno — só que, na vida cotidiana, ele é encoberto pelo hábito vazio. Kafka revela, através da sua técnica de estranhamento, o estranhamento encoberto da vida cotidiana — e desse modo é outra vez realista. (Ibid, p. 18)
Ainda por esse mesmo caminho, Günther faz uma relação de inversão entre sujeito e objeto. A questão central aqui, mostra Anders, é que, diferente da substituição clássica de homem por animal usadas para fins didáticos ligadas a moral cristã — “os homens são os bichos”; o homem, em Kafka, não nos parece “desumano” porque tem uma natureza “animalesca”, antes porque está rebaixado a funções de coisa (ANDERS, 2007, p. 19). Marx, ao falar sobre o caráter fetichista da mercadoria, exemplifica que quando a madeira é transformada em mesa, ela continua sendo madeira, “uma coisa”, diz, “sensível e banal” (2011, p. 205). Quando aparece como mercadoria, no entanto, se transforma de coisa sensível e banal para uma coisa suprassensível. Com isso, conclui:
ela não só se mantém com os pés no chão, mas se põe de cabeça para baixo diante de todas as outras mercadorias, e em sua cabeça de madeira nascem minhocas que nos assombram muito mais do que se ela começasse a dançar por vontade própria (Ibid, p. 205).
Reparar, aqui, na inversão: de coisa útil, produto do trabalho do marceneiro, a mesa se transforma em um ser vivo, independente do seu produtor, e inclusive superior a ele. Tendo isso como base, é possível indagar: estamos falando de literatura, e apenas de literatura?
Há, portanto, relações possíveis entre literatura e sociedade. E, mais particularmente aqui, entre Kafka e sociedade. No entanto, essas relações, se feitas descuidadamente, acabam por perder seu sentido primeiro, que é o de investigar um texto sem objetivar encontrar uma solução a um problema ou oferecer um modelo de interpretação específico sem a possibilidade de ressignificação. O texto, nesse caso, embora talvez contemplado isoladamente por elementos e análises interessantes, tenderia ao que é desconexo e superficial, justamente por tornar a obra literária uma prova, um registro ou evidência usada para demonstrar ou mesmo justificar uma ideia. E não é isso o que queremos.
Antes, esse texto se propôs a entrar na relação entre Kafka e sociedade tomando um cuidado particular de modo a não reduzir a obra de Kafka a qualquer que seja. Desta forma, procurou-se traçar relações gerais da obra do Kafka que de alguma forma dialogam com o que é social; sem, no entanto, sair do texto em sua materialidade. Mais do que isso, procurou-se também demonstrar que o que é social não dialoga necessariamente com textos específicos de Kafka, mas em sua obra como um todo a partir de, por exemplo, seu método de “olhar alienado” (CARONE, 2009, p. 45). Desta maneira, longe de querer esgotar as interpretações possíveis, esse texto pretendeu visualizar essas relações de modo dinâmico — visualizando os elementos, portanto, não de maneira isolada, se não pensando também, de maneira correlacionada, nos outros elementos do texto.
Admito, enfim, que às vezes no meio da noite realmente me assusto com a possibilidade de, sem mais nem menos, me transformar em um inseto monstruoso. Ou de invadirem a minha casa, comerem o meu café da manhã e ainda me acusarem de um crime que nem chego a de fato tomar consciência. A falta de coesão em O castelo me persegue também pela impossibilidade de chegar em um lugar realmente seguro. O corpo destroçado em A colônia penal e o animal abandonado em Um relatório para uma academia são imagens que me prendem exatamente pelo horror e o terror que parece tão, mas tão, palpável. Meu irmão costumava reclamar, quando dividíamos quarto, dos sons incompreensíveis que eu fazia durante a madrugada. Eles o acordavam, meu irmão dizia, e tudo parecia tão assustador que era como se eu tivesse, por um momento, sendo não eu mas outra. Kafka, afinal, não escreveu nenhum absurdo fora do nosso próprio. E meus medos, mais que reais, são (apenas) kafkianos.
REFERÊNCIAS
ANDERS, Günthers. Kafka: pró & contra. São Paulo, SP: Cosac & Naify, 2007. ISBN 978-8575035702 (broch.).
CARONE NETTO, Modesto. Lição de Kafka. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2009. 143 p. ISBN 9788535914979 (broch.).
KAFKA, Franz. A colônia penal. São Paulo, SP: Nova Época, c1948. 203 p.
KAFKA, Franz. A colônia penal. Rio de Janeiro: Editora Antofágica, 2020. 216p.
KAFKA, Franz. A metamorfose. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2002. 62 p. ISBN 8571646856 (broch.).
KAFKA, Franz. O castelo. 2. ed. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2001, c2000. 482 p. ISBN 8535900543 (broch.).
KAFKA, Franz. Um médico rural: pequenas narrativas. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 1999. 84 p. ISBN 8571648913 (broch.).
MARX, Karl. O capital. São Paulo, SP: Boitempo, 2011. ISBN 8575595482
SIMMEL, Georg. A metrópole e a vida mental. In: VELHO, Otávio Guilherme (Org). O fenômeno urbano. (broch.).
Jamilly Santos
Jamilly Santos é estudante de Estudos Literários na Universade Estadual de Campinas (Unicamp) e colaboradora do Instituto Mojo como assistente editorial.