Escrito por: Andrew Glazzard
Traduzido por: Murilo Jardelino
A série Sherlock, da BBC, trouxe de volta o grande detetive depois de sua suposta morte. Andrew Glazzard investiga as referências implícitas ao Império Britânico e o contexto histórico do retorno Sherlock Holmes à Baker Street, em 1903, em A casa vazia, de Conan Doyle.
A saga Sherlock Holmes, de Conan Doyle, tem desfrutado de — ou em alguns casos sofrido com — inúmeras adaptações desde sua primeira edição, que data de 1887 a 1927. A versão para TV da BBC, estrelada por Benedict Cumberbatch, é talvez uma das mais bem-sucedidas. Entre outros motivos, porque seus roteiristas articulam um profundo conhecimento da versão original com um talento para, a partir daí, desenvolvê-la de maneira engenhosa: a estratégia para aludir, transformar e atualizar a primeira versão da saga é abundante em frescor e familiaridade. A nova série começa com o episódio O caixão vazio, cujo título é uma alusão divertida à história de 1903 de Conan Doyle, A casa vazia, em que Holmes retorna, depois de 3 anos, de sua suposta morte pelas mãos do professor Moriarty, na Suíça.
A saga de Conan Doyle é particularmente apropriada para esse tipo de tratamento: os fãs críticos, que se autodenominam “sherlockianos”, examinam os detalhes das narrativas do dr. John Watson (conhecido pelos especialistas por “o cânone”), procurando pistas, contradições e anomalias; eles frequentemente elaboram explicações alternativas conspiratórias para as ações, revelam os supostos erros de Conan Doyle (ou de Watson) e avaliam as histórias, fazendo referências cruzadas com uma erudição enciclopédica. Assim, embora Conan Doyle seja frequentemente considerado um escritor razoavelmente transparente, que evita a complexidade, a inovação tecnológica e os desafios para a ideologia ortodoxa em favor da elegante criação de mitos, a diligência dos sherlockianos mostra que a simplicidade dessas histórias é muitas vezes enganosa: em uma história como A casa vazia, uma grande quantidade de informações importantes está implícita ou é apenas sugerida. Recuperar esses subtextos por meio de uma leitura cuidadosa e do conhecimento do que estava acontecendo na época pode ajudar a revelar Holmes e seu criador sob um novo ponto de vista.
A casa vazia entrelaça duas narrativas, o mistério de um assassinato e a história da volta de Holmes a Londres três anos depois de sua suposta morte na Suíça, em 1891. Reunido com seu velho amigo e cronista, o dr. Watson, Holmes narra a história de sua fuga nas cataratas de Reichenbach, seguida por uma exótica e extraordinária odisséia:
Viajei durante dois anos pelo Tibete, me diverti visitando Lassa e passando uns dias com o dalai-lama. Você deve ter ouvido falar das notáveis explorações de um norueguês chamado Sigerson, mas aposto que nunca lhe ocorreu que estava tendo notícias deste seu amigo. Passei depois pela Pérsia, dei uma olhada em Meca, fiz uma breve e interessante visita ao califa de Cartum e comuniquei os resultados ao Ministério das Relações Exteriores.
Este trecho é rico em alusões à exploração e conquistas imperiais. “Sigerson” pode ser uma alusão ao explorador sueco Sven Hedin, cujas explorações pioneiras da Ásia Central e do planalto tibetano — suas descobertas foram publicadas pela primeira vez em inglês em 1903 — haviam começado a despertar interesse e admiração. Mas foi outro explorador do Tibete que na verdade ocupava as manchetes e que nos alerta para o subtexto imperialista da história. Em 1903, realizava-se a “expedição” de Francis Younghusband ao Tibete. Ele invadiu o país em dezembro de 1903 com um exército de dez mil soldados e chegou a Lassa em agosto de 1904: foi uma invasão, exceto em sua designação. O episódio final da campanha foi apelidado por Kipling de “O grande jogo”, em que a Grã-Bretanha e a Rússia travaram uma guerra fria pelo controle das terras asiáticas localizadas entre os dois impérios. A presença de Holmes, disfarçado de Sigerson, na Lassa de 1890 poderia ser lida mais como fundamento para a invasão de Younghusband do que como exploração desinteressada ou um método extremo para evitar atenção.
Uma explicação de “O grande jogo” pode estar por trás desse período em que Holmes esteve na Pérsia, outro objeto de intensa competição anglo-russa: o crescente envolvimento econômico da Rússia com o regime do xá na virada do século deixou o palácio de Whitehall e Calcutá preocupados e foi visto como uma ameaça às fronteiras da Índia britânica. Em Meca, outro ponto de parada, Holmes (que presumivelmente não havia se convertido ao islamismo) teria usado um de seus famosos disfarces, como o explorador e diplomata britânico sir Richard Burton havia feito em sua expedição em 1853. E com certeza exigiu-se o talento de Holmes para o disfarce em seu outro destino: como ele deixa claro, Cartum (ou, mais especificamente, a cidade vizinha de Omdurman) estava na década de 1890 sob o controle do califa Abdallahi, sucessor de Maomé Amade, o “Mádi”.
O califa e seu movimento madista no Sudão, o Mahdiyya, ocuparam uma posição semelhante na consciência coletiva ao final da era vitoriana à que o Taleban e a Al Qaeda ocupam hoje. As forças do Mahdiyya foram responsáveis por algumas das mais desastrosas derrotas militares da Grã-Bretanha na década de 1880, levando por fim ao martírio do general Charles Gordon, cujo retrato, como dito em A caixa de papelão (The Adventure of the Cardboard Box), está no número 221b da Baker Street. Em 1897, Conan Doyle foi credenciado como jornalista da Westminster Gazette para acompanhar a expedição de Herbert Kitchener ao Sudão, cujo objetivo era destruir o Mahdiyya. Todavia, seu trabalho jornalístico não foi bem-sucedido e ele foi convidado pessoalmente por Kitchener para voltar para casa.
No entanto, os textos enviados por Conan Doyle para seu jornal revelam um entusiástico apoio ao projeto de Kitchener, que culminou em 1898 com a batalha de Omdurman, na qual dez mil membros das forças do califa foram mortos em questão de horas pelos exércitos britânico e egípcio (os quais sofreram meras 47 baixas).
Em A casa vazia, portanto, Conan Doyle escreve sobre o período anterior a Omdurman, mas já com o conhecimento do que ali havia acontecido. A referência ocasional de Holmes à comunicação com o Ministério das Relações Exteriores só parece confirmar o que já fora assinalado: ele passou os três anos depois de sua fuga de Reichenbach não apenas se escondendo dos capangas de Moriarty, mas também trabalhando clandestinamente para o Império Britânico.
Holmes retorna a Londres para desvendar o assassinato do honorável Ronald Adair, o “mistério da sala trancada”, no qual um jovem aristocrata é encontrado morto a tiros em sua sala de estar no andar de cima, fechada por dentro, no número 427 da Park Lane. A janela está aberta, mas não há sinais de que alguém poderia ter entrado por ali; não há arma, mas na mesa ao lado de Adair há pilhas de moedas de ouro e prata, algumas cédulas e uma folha de papel com nomes e números. Diz-se, então, que Adair passava a maior parte de seu tempo jogando cartas em vários clubes de Londres, e que os nomes naquela folha são de jogadores com quem ele se sentava à mesa de jogos. Diz-se também que seu noivado acabara de ser rompido, e que ele e seu amigo, o coronel Sebastian Moran, haviam ganhado recentemente uma grande quantia de Godfrey Milner e Lord Balmoral no jogo de cartas.
O conhecimento prévio de Holmes parece solucionar o mistério. Ele sabe que o coronel Moran é, de fato, um dos capangas do professor Moriarty e “o segundo homem mais perigoso de Londres”. Ele arma uma cilada para Moran, colocando um boneco de cera (movido de tempos em tempos pela sra. Hudson) na janela de seus aposentos em Baker Street; ele, Watson e o inspetor Lestrade observam quando Moran se posiciona em uma casa vazia com um campo de visão para a janela, testa seu rifle de pressão, fabricado na Alemanha, adaptado para funcionar com balas de ponta macia, e atira no boneco de cera. Lestrade prende Moran como o assassino de Ronald Adair.
A identidade do assassino de Adair é um indício de referências implícitas ao Império Britânico. O coronel Moran entrou para o mundo do lazer de elite (jogos com altas apostas) e do crime de elite (bando de Moriarty) a partir de sua experiência no exército da Índia Britânica, onde havia sido “o tiro mais certeiro que nosso Império do Oriente já produziu ”, famoso por perseguir tigres na floresta: Holmes o chama de “velho shikari” — uma palavra de origem urdu para caçador. Como Watson, ele serviu no Afeganistão (mas não com a mesma distinção de Watson, mencionada nas correspondências), e ele tem o império no sangue: seu pai era um ex-ministro britânico na Pérsia. Watson se surpreende com o histórico de “soldado honrado” desse renegado, o que leva Holmes a especular que a “mudança repentina” de Moran para o mal resulta de algum marcador genético herdado.
Há muitos subtextos intrigantes nesse mistério — a preocupação quanto às implicações da proeminência tecnológica da Alemanha, teorias da degeneração, em moda na época — mas o que nos interessa aqui é o histórico imaculado de Moran no exército. Esta história é em parte uma investigação sobre como e por que homens do império, a princípio decentes, podem se tornar maçãs podres. Algumas pistas no texto sugerem que Conan Doyle tinha um caso real em mente. Questionado por Watson sobre o motivo para Moran matar Adair, a resposta de Holmes levanta a suspeita de que Moran estava trapaceando nas cartas e que Adair o havia desmascarado: “Muito provavelmente ele havia falado [para Moran] em particular, ameaçando expô-lo a menos que ele renunciasse voluntariamente à sua filiação ao clube e prometesse não jogar mais.” Ao invés de levar esse compromisso a cabo, Holmes supõe que Moran assassinou Adair.
Aqui a história parece aludir a um dos maiores escândalos aristocráticos da década anterior, que ficou conhecido como “Escândalo real do bacará” ou “O caso Tranby Croft”, e que deixou os leitores de jornais na época vitoriana obcecados, quando foi levado à Suprema Corte em 1891. Em uma festa aristocrática em Tranby Croft, Yorkshire, em setembro de 1890, um tenente-coronel da Guarda Escocesa, sir William Gordon-Cumming, foi acusado por seus anfitriões e por alguns colegas ex-oficiais do exército de trapacear no bacará — uma variação do blackjack ou o vingt-et-un francês, com um banqueiro, dois jogadores e dois grupos de observadores, apostando quem tem na mão o mais próximo de nove. Gordon-Cumming, um barão escocês e grande proprietário de terras, que havia lutado com grande distinção na Guerra Zulu e nas campanhas egípcias e sudanesas (inclusive na batalha de Abu Klea, em 1884, como parte da missão destinada a libertar o general Gordon em Cartum). Gordon-Cumming, que era também um admirado caçador de tigres indianos, processou seus acusadores por calúnia, mas perdeu. O que deu publicidade ao caso foi a identidade do banqueiro envolvido naquelas noites de bacará, e que testemunhou no Supremo Tribunal: Albert Edward, príncipe de Gales que, após a morte de sua mãe em 1901, tornou-se rei Eduardo VII e imperador da Índia.
Eduardo era conhecido por seus escândalos — não foi por acaso que Henry James o apelidou de “Eduardo, o Carinhoso” —, mas ser chamado como testemunha dava a ele uma reputação questionável, ao se tornar o primeiro herdeiro ao trono a ser forçado a depor perante um tribunal desde que Henrique V havia sido processado em 1411. Esse escândalo foi, portanto, um dos mais graves de Edward, revelando-o como um contumaz jogador de um jogo ilegal. Poderia ter sido pior para ele: as partes envolvidas e seus representantes legais concordaram em não mencionar no tribunal o fato inconveniente de que Edward viajava pelo país com seu próprio conjunto de fichas de bacará.
A imprensa vitoriana, que lotou o tribunal, examinou cada detalhe do caso. As palavras e os atos de Gordon-Cumming nas duas noites de 1890 ganharam dimensão nacional, entre elas, a dúvida sobre se uma folha de papel em que ele registrara o progresso de cada mão teria facilitado sua trapaça ou se teria sido evidência para corroborar sua inocência. Os principais atos, contudo, aconteceram depois que alguns dos outros jogadores observaram Gordon-Cumming aparentemente (de maneira ilegal, conforme as regras do jogo) aumentar ou diminuir suas apostas de acordo com a virada das cartas. Gordon-Cumming foi acusado, mas contestou a trapaça. O caso foi então passado para as mãos do participante mais ilustre: Edward decide resolver a questão com total discrição, mas para preservar o senso de justiça, Gordon-Cumming seria obrigado a assinar uma declaração prometendo nunca mais jogar cartas. Edward esperava que o assunto terminasse ali, mas meses depois começaram a circular rumores, e Gordon-Cumming achou que não teria outra opção a não ser processar seus acusadores. Depois da derrota, foi condenado ao ostracismo por Edward e pelos cortesãos reais, então ele se casou com uma herdeira e mudou-se para sua propriedade sombria em Gordonstoun, na Escócia. O veredicto popular, no entanto, parece ter sido de que ele era um homem inocente, injustamente caluniado, e investigações mais recentes sugerem que a acusação de trapaça foi uma vingança de outros convidados, irritados com seu sucesso em seduzir suas esposas.
Outro indício do escândalo de Tranby Croft está no nome do parceiro de carteado de Moran e Adair, lorde Balmoral. Nenhum plebeu seria autorizado a receber um título do castelo da família real em Aberdeenshire. Edward VII era uma das pessoas mais lembradas da época, pois apenas havia sido coroado rei-imperador em agosto de 1902, e particularmente por Conan Doyle: o autor fora colocado ao lado de Edward em um jantar algumas semanas antes, e condecorado por Edward em outubro. Conan Doyle gostava do príncipe e previu que seu reinado seria muito mais bem sucedido do que muitos de seus críticos sugeriam.
O tenente-coronel Gordon-Cumming, herói de guerra e grande caçador que (supostamente) havia trapaceado no jogo de cartas e forçado a assinar uma declaração depois de ser denunciado, parece um provável candidato para inspirar o coronel Moran, que prefere porém matar a processar seus acusadores . Nesse ponto, o problema da corrupção de ilustres homens do império parece estar resolvido: são maçãs podres que, no final, são descobertas e punidas. Outra possível alusão, no entanto, complica as coisas. A misteriosa folha de papel de Ronald Adair lembra a de Gordon-Cumming, que era o foco de toda a atenção no tribunal, e nos faz considerar se há algo de Gordon-Cumming em Adair também. E há outras sugestões de que Adair — que também tem ascedência aristocrática, já que seu pai era ex-governador de uma colônia na Austrália — não é a vítima inocente da explicação conveniente de Holmes.
De fato, a explicação de Holmes não só é absurda, como também inadequada para explicar os muitos detalhes fascinantes na cena do crime e na história pessoal de Adair. Por que sua noiva rompeu o noivado? Por que Adair trancou a porta da sala de estar (um detalhe que atrai a atenção, mas que fica em suspenso)? Mais importante, talvez, Adair é (como Edward VII) um jogador habitual, “jogando continuamente”, e por dinheiro: esse homem solteiro, ocioso, endinheirado, viciado em jogos de azar, não é o material do qual impérios são constituídos. A incapacidade de Holmes em apresentar um motivo crível para o assassinato de Adair nos obriga a concluir que sua parceria com Moran consistiu em uma parceria criminosa que havia azedado.
Então, o que devemos fazer com a suposta determinação de Holmes para encobrir as coisas? Na Tranby Croft, Edward atuou como juiz e júri, condenando de fato o tenente-coronel Gordon-Cumming, para que os códigos de conduta para a aristocracia pudessem ser preservados e para que os segredos das classes de prestígio continuassem encobertos. Ao exonerar Adair e atribuir toda a culpa ao coronel Moran, Holmes constrói uma ficção conveniente para preservar o mito de que homens honrados permanecem honrados em todos os casos, exceto nos mais raros e excepcionais. Holmes, o guerreiro imperial clandestino, voltara para casa para sustentar uma aristocracia (e, na vida real, uma realeza) que era vulnerável a suspeitas de impropriedade. Não é de se admirar, como é possível ler em A aventura dos três Garridebs, que tenha sido concedido a Holmes em junho de 1902 — que recusou, ao contrário de seu criador — um título de cavaleiro “por serviços que talvez possam algum dia ser relatados”.
Andrew Glazzard
Andrew Glazzard concluiu recentemente um doutorado em literatura inglesa na Universidade de Londres. É especialista em Joseph Conrad, H.G. Wells e Arthur Conan Doyle, e atualmente está escrevendo um livro sobre “Conrad e a ficção popular”.
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Murilo Jardelino
Tradutor.