Escrito por: Benjamin Breen
Traduzido por: Rayssa Feu
No aniversário de cem anos da morte de Jack London, Benjamin Breen analisou o último livro que seria publicado durante a sua vida, O andarilho das estrelas (The Star Rover, 1915) — uma história estranha sobre regime de isolamento e reencarnação interestelar que nos fala sobre as lutas e sonhos do próprio homem.
Um catamarã parte de Larkspur, cidade ao norte da Califórnia, vinte vezes por dia. A embarcação traça um arco suave em direção ao Ferry Building, em São Francisco, mais ao sul, passando por afloramentos rochosos vermelhos, montanhas baixas de grama dourada e, ocasionalmente, uma casa flutuante. Logo, a característica linha do horizonte de São Francisco aparece, torres em branco e prata perolados ultrapassam a camada permanente de neblina espessa que abraça a ponte Golden Gate. Os turistas se agrupam no estibordo do catamarã para admirar essa vista, mas raramente percebem que outro monumento emerge diretamente atrás deles. San Quentin.
Os arredores da prisão são de uma beleza arrebatadora. Obviamente o prédio em si é austero como deve ser uma penitenciária de segurança máxima: paredes de concreto manchado e pilares sombrios como os de uma catedral. Mas a paisagem é encantadora. À noite, com grilos cantando nas montanhas e o brilho de estrelas trespassando a névoa acima de São Francisco, a justaposição parece onírica, alucinante. É aqui, nesta prisão no meio do paraíso, que o romance O andarilho das estrelas, de Jack London se desenrola.
A única incursão de London no domínio da fantasia e da ficção científica é, ao mesmo tempo, um monólogo minimalista e amargurado sobre a vida na solitária e uma viagem exuberante pelo universo. O narrador do livro, Darrell Standing, se desenvolve indo, de forma cativante, da agonia de seu confinamento em uma camisa de força até suas viagens em meio as estrelas equipado com uma varinha de vidro que o permite acessar uma infinidade de vidas passadas, incluindo um eremita do Século 4, um caçador de focas naufragado, um espadachim medieval e um confidente de Pôncio Pilatos. É um romance sobre privação sensorial em uma realidade compartilhada e uma sobrecarga sensorial na realidade privada.
Este livro é profundamente eclético. É generosamente influenciado pelos antepassados do fantástico: contos de fada, lendas nórdicas, mitologia grega. Mas também consegue incluir cientistas conflituosos da Universidade da Califórnia, “drogados”, caçadores-coletores neolíticos, kimchi e uma exposição jornalística do sistema carcerário moderno. A pluralidade bizarra é exatamente o ponto. A narrativa de London faz muitas coisas, mas parece sempre voltar à questão sobre como os mundos englobados dentro de uma única consciência podem interagir com a realidade compartilhada da sociedade moderna. Em um momento em que nos movemos de forma impetuosa em direção a um futuro próximo de realidade virtual imersiva e de conexão digital infinita, O andarilho das estrelas tem muito a nos dizer.
A evocação do confinamento desse romance nasceu de uma dolorosa experiência pessoal. London cresceu pobre, sem pai, e teve uma vida dura como adolescente. Durante o inverno de 1894 ele cumpriu 30 dias na penitenciária Erie County, em Buffalo, Nova York, detido por vadiagem aos dezoito anos. A tristeza desse período na prisão invernal permaneceu com London. “Abuso sexual foi somente um dos horrores mais leves não imprimíveis da Erie County”, escreveu em sua autobiografia The Road (1907):
Digo “não imprimíveis”; e, na verdade, devo também dizer indescritíveis. Eram impensáveis para mim até que os vi, e eu não era um mero jovenzinho inexperiente das coisas do mundo e dos terríveis abismos da degradação humana. Seria necessária uma queda livre para alcançar o fundo da Erie County, e eu apenas comento de forma superficial e cômica sobre as coisas que vi naquele lugar.
As experiências de London na prisão e pegar carona nos trens durante o Pânico de 1893 o radicalizaram. Ele se filiou ao Socialist Labor Party, o partido socialista dos trabalhadores estadunidenses, em 1896, e começou a dar discursos inflamados nos parques de Oakland. Quando começou a escrever O andarilho das estrelas — originalmente lançado em capítulos nas revistas, em 1914 —, London se distanciou dos ideais socialistas. Ainda assim, a narrativa mantém uma veia de realismo sombrio que lembra as obras de seu amigo Upton Sinclair. O confinamento do personagem principal, Darrell Standing, na “camisa de força” foi inspirado pelas entrevistas de London com Ed Morrell, um bandido do velho oeste que sofreu brutalmente durante seu confinamento em San Quentin. Em meio a sua estrela itinerante, Darrell Standing também acha tempo para refletir sobre os males da Guerra Filipino-Americano: “Era risível contemplar a Ciência prostituindo todo o poder das suas conquistas e a perspicácia de seus criadores para a violenta introdução de substâncias desconhecidas nos corpos de pessoas negras”.
London estava terminando O andarilho das estrelas quando a Primeira Guerra Mundial começou. Embora não pudesse ter antecipado a catástrofe iminente de agosto de 1914, a vida pessoal de London já estava em ruínas desde o verão anterior. Naquele agosto, sua amada casa de campo, a Wolf House, havia sido incinerada em circunstâncias misteriosas. No mesmo ano, ele escreveu Jack Barleycorn, um romance autobiográfico sobre o que London, profundamente alcoólatra, chamava “a límpida luz branca do álcool”. Olivia Laing, em seu incrível livro Viagem ao redor da garrafa: Um ensaio sobre escritores e a bebida, observa que romancistas alcoólatras frequentemente se referem à sua doença em suas obras, nunca reconhecendo de verdade a dimensão de sua própria negação. A obra descrita por London como “autobiografia alcoólica” consegue, de alguma forma, circular em torno do seu assunto central, nunca reconhecendo completamente o vício que o mataria aos 40 anos. “Leia John Barleycorn e logo você descobrirá o que o aflige”, comentou um dos conhecidos de London. “O pior é que ele parece nem saber em que nível está.”
Mas London, de alguma forma, sabia. Suas obras desse período revelam um homem profundamente inteligente lutando contra a metafísica de seus vícios. Vemos isso na personificação da intoxicação alcoólica de John Barleycorn na forma de diálogo com uma força nebulosa que London chama de “Lógica Branca”. Pode-se observar isso quando o mesmo livro traz referências à “Terra do Haxixe… uma terra de enormes extensões de tempo e espaço”, e no detalhe inusitado de Darrell Standing usando agulhas para escapar de sua cela em O andarilho das estrelas (London se viciou em morfina nessa época). Isso se torna visível na força motriz de O andarilho das estrelas, que é movido não por drogas ou bebida, mas outra forma de consciência alterada — as alucinações provocadas pela privação sensorial.
O livro, em suma, baseia-se no famoso conceito de outro escritor aventureiro e usuário de drogas, Arthur Rimbaud: “a disfunção sistemática de todos os sentidos”.
É tentador especular sobre a inspiração que London retirou de outros vários acontecimentos misteriosos que rondavam os círculos boêmios da Área da Baía de São Francisco no anos 1910. Era uma época na qual os membros da Ordo Templi Orientis, de Aleister Crowley, se encontraria com a primeira onda de budistas americanos, ou uma Gertrude Stein jovem cruzaria o caminho de John Muir. O andarilho das estrelas certamente canaliza o momento cosmopolita de São Francisco nessa era pré-Primeira Guerra Mundial. A projeção astral de Standing toma emprestada a estética dos ocultistas pós-vitorianos, refletindo, através das suas viagens astrais, o fascínio de London pelas terras do outro lado do Pacífico. Em uma passagem, Standing tenta usar seu conhecimento bizarramente específico sobre kimchi (“o melhor kimchi é feito pelas mulheres de Wosan”) para convencer os outros detentos que se conectou, em uma vida passada, com um marinheiro naufragado na Coreia “que, por meio de vários nascimentos e mortes, deixou suas experiências de herança para mim, Darrell Standing.”
Há algo aqui do desejo do Jack London de dezoito anos de ser o que chamava de “comerciante de ideias”. Lendo por volta de dezenove horas por dia (segundo sua contagem duvidosa), London estudou para os exames de admissão da Universidade da Califórnia, em Berkeley com tanto afinco que parecia querer esquecer de si, desejando mentalmente habitar outras vidas através dos livros. Standing traça um passo além: com sua projeção astral, ele se torna participante das outras vidas, chamando o leitor consigo.
Esse desejo de acessar outros mundos veio da obsessão autodidata de London pelo seu alcoolismo incontrolável. Como London disse em 1913, há dois tipos de alcoólatras: o primeiro é composto por aqueles que bebem para entorpecer a consciência, abandonar a realidade em detrimento dos “elefantes-rosa” (aparentemente, o primeiro registro impresso da expressão); o segundo busca um cérebro bêbado, e não um corpo — ir ao encontro da criatividade em vez do esquecimento. London se considerava dentro do segundo grupo, e podemos ler O andarilho das estrelas como uma extensão da exploração das próprias tentativas de London de aproveitar a privação sensorial para fins criativos.
Darrell Standing também relaciona suas projeções astrais e visões alucinantes com o que “os drogados curtem em sonhos narcóticos e delírios”. Essa também era uma válvula de escape que London conhecia bem. Seu biógrafo mais recente, Alex Kershaw, descreve o estoque de London — “estricnina, sulfato de estrôncio, acônito, beladona, morfina” e ópio — como “o objeto mais importante da sua vida”.
Apesar da temática de encarceramento, vício e assassinato, O andarilho das estrelas também celebra o poder da narrativa de superar o sofrimento pessoal. As ilusões de Standing são uma fuga da realidade, mas, como London contrapõe, uma fuga saudável. “Lembrar incessantemente”, narra Standing, “torna-se obsessão, loucura. Então, o problema que encontrei na solitária, onde o incessante lembrar tentava me possuir, foi esquecer.” Lembrar-se de tudo, esquecer-se de nada — a doença de Standing é familiar porque também é nossa. Talvez a criatividade alegre e irrestrita de O andarilho das estrelas apresente uma solução.
Benjamin Breen
Benjamin Breen é professor assistente de história na UC Santa Cruz. Ele é o autor do livro The Age of Intoxication: Origins of the Global Drug Trade (University of Pennsylvania Press, 2019)
Rayssa Feu
Tradutora.