Escrito por: Vanessa Smith
Traduzido por: Daniela Cestarollo, LabPub
O que leva leitores, geração a fio, a continuar se emocionando com os livros de Charlotte Brontë, especialmente Jane Eyre?
Os romances de Brontë são bildungsromane — romances de formação —,mas diferenciam-se notoriamente dos livros de Jane Austen sobre a entrada das mulheres no mundo adulto.
A educação da heroína de Austen tem um viés moralista nitidamente destacado para o leitor. Algumas dicas óbvias aparecem no texto, e logo entendemos que, para sair de casa e se casar com “um homem solteiro e rico”, a heroína precisa escolher entre aprender a dosar sua sensibilidade com pitadas de razão, lutar contra preconceitos, evitar interferir no que não lhe diz respeito ou, ainda, deixar-se persuadir facilmente.
Por outro lado, as heroínas de Brontë se debatem com questões que, antes mesmo de se tornarem éticas, são psicologicamente complexas, como resistir à tentação de um relacionamento no qual não são amadas de verdade; conseguir respeito sem ter condição social; ou continuar amiga da pessoa que invejam.
Não há prenúncio de respostas a essas perguntas e, escandalosamente para muitos de seus primeiros leitores, empregam o privilégio dos princípios de autoconhecimento e autoexpressão em detrimento ao moralismo cristão imposto.
Brontë também não apresentava as eventuais decisões tomadas por suas heroínas como fáceis, que valessem o sacrifício ou que tivessem um “reconhecimento universal”.
Juliet Barker, acadêmica e autora da biografia da escritora, notou que:
Todas as heroínas de Charlotte […] são órfãs.
Não são bonitas nem ricas (geralmente precisam trabalhar para se sustentar), e mesmo assim asseguram seu direito a uma vida interior bela e plena.
“Acha que porque sou pobre, desconhecida, comum e baixinha, não tenho coração e alma? Está enganado!” — Jane Eyre declara a Rochester.
Esses livros garantem que qualquer um de nós, por mais desprovidos de tudo, podemos defender a integridade de nossos sentimentos. E podemos demonstrá-los com cuidado e precisão, por meio da linguagem.
Jane Eyre foi o primeiro romance publicado de Brontë, porém não foi seu primeiro trabalho de ficção. Ela e suas igualmente precoces irmãs Branwell, Emily e Anne, vinham produzindo “livretos” desde que Charlotte tinha 11 anos. Em seu segundo mais antigo manuscrito, The History of the Year [“A história do ano”], redigido em março de 1829, ela conta que:
Papai comprou uns soldadinhos para a Branwell em Leeds. Ele chegou em casa tarde e já estávamos na cama. Na manhã seguinte, Branwell se apareceu na porta do quarto com uma caixa cheia de soldadinhos de brinquedo. Emily e eu pulamos da cama e, ao agarrar um deles, exclamei: “Esse é o Duque de Wellington! Quero para mim”. Ao dizer isso, Emily escolheu outro e afirmou que seria o seu. E assim que Anne desceu, também escolheu um.
Os soldadinhos de brinquedo serviram para inaugurar o que as meninas Brontë denominariam de “nossas peças teatrais”: jogos intermináveis ambientados em mundos fictícios, como nos contos Glass Town, Angria e Gondal, todos redigidos com caligrafia minúscula em “livretos” em miniatura.As irmãs continuaram escrevendo esses contos e poemas em coautoria até depois dos seus vinte anos. São admiráveis não apenas pelo uso precoce da linguagem, mas por seu emergente e aguçado erotismo. Seus heróis são inspirados em Byron e suas heroínas são lindas, afortunadas e frequentemente masoquistas.
Apesar dessas tentativas iniciais de escrita das irmãs Brontë apresentarem traços de elementos góticos e românticos, a “pobre misteriosa, comum e baixinha” Jane Eyre, e a enigmática, maltratada e independente Lucy Snowe de Villette (1853) são, em comparação, tentativas fracassadas.
Quando Charlotte começou a escrever romances, ela recorreu à memória, mas também à imaginação, e as suntuosas locações de Angria abriram caminho para um mundo reconhecível, de imagens cotidianas e nítidas: a “tortura que é enfiar os dedos dos pés inchados, duros e doloridos nos sapatos pela manhã” em Jane Eyre; o mastim Tartar “cheirando as flores frescas” derramadas no chão em Shirley (1849); meros itens de mobília flutuando na volta à consciência, quando Lucy Snowe se recupera da doença em Villette.
São esses detalhes realistas, assim como os conflitos apaixonantes e as emoções que os amparam, que nos permitem guardar as histórias de Charlotte Brontë na memória, mesmo após o término da leitura.
As irmãs Brontë publicaram seus primeiros romances e poemas usando pseudônimos como Currer, Ellis e Acton Bell. Embora uma coleção de seus poemas, publicados em 1846, tenha vendido apenas três cópias, o mistério sobre a autoria tornou-se uma questão logo após o estrondoso sucesso de Jane Eyre, que saiu no ano seguinte.
Leitores e críticos especulavam não apenas sobre o gênero dos autores, mas também sobre serem de fato um, dois ou três escritores.
Assim começou o complexo entrelaçamento, que continua até hoje, do apreço crítico aos romances de Brontë e suas especulações biográficas.
As experiências de Jane Eyre na escola de Lowood reproduzem o que Charlotte viveu na conservadora e religiosa escola de Cowan Bridge. Ambas as obras, Villette e Professor (1857), exploram esse período — primeiro como estudante e depois como professora, na escola Heger, em Bruxelas. A Shirley de Shirley Keeldar e Caroline Helstone são retratos autênticos de Emily e Anne: ambas morreram durante a criação do romance.
A tentação de replicar as conexões entre arte e vida ganhou maior impulso com a publicação do livro de Elizabeth Gaskell, A vida de Charlotte Brontë, em 1857, dois anos após a morte de Charlotte. O trabalho pretendia restaurar a reputação da autora e protegê-la das acusações de rudeza e falta de feminilidade.
Todavia, Gaskell conseguiu dar o devido destaque ao mito permanente de Charlotte Brontë: a filha de um devoto homem da Igreja, proveniente de um povoado localizado no condado de Yorkshire, e cujas escandalosas representações dos desejos femininos e franqueza eram apenas produtos da inocência, e não de de experiências vividas.
A emoção dos novos leitores, mesmo duzentos anos após o nascimento de Charlotte Brontë, ainda reage à moderna psicologia de seus personagens e à identificação direta que sua narrativa em primeira pessoa provoca e ao sensual imediatismo da realidade do século 19 que ela evoca de forma tão irresistível.
Vanessa Smith
Vanessa Smith é professor de Inglês na University of Sydney.
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Daniela Cestarollo, LabPub
Tradutora.