Zelda Fitzgerald: uma voz criativa e silenciada que dialoga com nosso momento cultural


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Escrito por: Deborah Pike
Traduzido por: Josie Nascimento

Eu sou um livro. Pura ficção.

— Zelda Fitzgerald

 

A biografia é a mais falsa das artes.

— F. Scott Fitzgerald

Zelda e F. Scott Fitzgerald encarnam quase todas as hipérboles da prosperidade americana do início do Século 20. Ícones da Era do Jazz, glamourosos e atraentes, também foram vítimas dos excessos de sua época. Juntos, representavam os Estados Unidos modernos: ricos, precoces, multívagos.

Eram extremamente encantados com vida que levavam, encantados e desencantados um com o outro. O que realmente amavam era a construção de uma versão alternativa de sua própria existência através da arte. Se autodocumentavam incansavelmente: fotos, cartas, diários e rascunhos são abundantes. Profundamente conscientes de sua posição frente a opinião popular, transformaram sua vida privada em um patrimônio público.

O uso literário que F. Scott Fitzgerald fez das palavras de sua esposa — suas conversas, observações, cartas, diários e até registros médicos — tem sido calorosamente debatido. Ele usou os diários da adolescência de Zelda como material para os diários de Gloria Patch em Os belos e malditos. Os registros médicos dela, de uma clínica em Rive de Prangins, na Suíça, podem ser lidos quase palavra por palavra em Suave é a noite.

A biógrafa Linda Wagner-Martin afirma que “Zelda forneceu [para Scott] os detalhes, a linguagem, os personagens, as emoções e os enredos. O intelecto e a paixão de Zelda eram frequentes fontes para a ficção dele.” Graças ao status socialmente privilegiado do qual desfrutava um escritor do sexo masculino no início do Século 20, atitudes desse tipo não eram particularmente questionadas. No entanto, intelectuais feministas como Lynette Felber classificam o uso que Fitzgerald faz das palavras da mulher como “plágio doméstico”.

Ainda que seja impossível determinar se esse “plágio” levou Zelda à instabilidade mental, ele certamente precipitou e exacerbou suas crises.

A partir dos 27 anos, ela passou a sofrer periodicamente de depressão, e também tinha alucinações visuais e auditivas. Apesar de ser inicialmente internada no sanatório mais caro da Suíça, foi vítima de tratamentos psiquiátricos brutais durante muitos anos. Morreu aos 48, no incêndio de um hospital em Asheville, Estados Unidos.

Retrato de Zelda Fitzgerald em 1919. Fonte.
Retrato de Zelda Fitzgerald em 1919.

Por mais que Zelda fosse inquestionavelmente a musa de seu marido, ela certamente também era uma escritora com méritos próprios. Sua produção criativa foi assombrosa: estudou balé clássico intensamente, escreveu dezenas de contos, diversos artigos jornalísticos, uma peça de teatro, dois romances, centenas de cartas, diários e também produziu inúmeras obras de arte.

Zelda merece um lugar no modernismo literário recente e há um interesse renovado por sua história — na ficção e no cinema. Scarlett Johansson e Jennifer Lawrence foram escaladas para interpretá-la em dois filmes com estreia ainda sem data: The Beautiful and the Damned e Zelda, de Ron Howard.

A trajetória literária de Zelda começou com histórias e artigos espirituosos e de linguagem coloquial, publicados dos anos 1920 até o início dos anos 1930 em revistas como The New Yorker e College Humour. Nesses artigos, as protagonistas eram sempre flapper girls, ou “melindrosas”, termo que se cunhou aqui no Brasil. Seu trabalho posterior foi mais experimental e desafiador.

Tanto seus escritos publicados quanto os pessoais revelam uma autora extremamente experimental, como foram outros modernistas e surrealistas. Zelda inovava inclusive em sua própria linguagem. Depois da publicação, em 1932, de seu romance Esta valsa é minha, que mistura elementos da Geração Perdida com a temática do balé, sua criatividade foi enterrada à força, quando seu marido a proibiu de escrever.

Um padrão mítico

Zelda teve de se expressar de maneira muito característica e quase secreta. Essa forma de escrever se desenvolveu também como resultado dos muitos anos que passou enclausurada já no fim da vida, alheia ao contato com a cultura mainstream. Minha pesquisa, que utiliza fontes dos arquivos da Universidade de Princeton, anteriormente negligenciadas, expõe as condições que silenciaram a criatividade de Zelda: seu matrimônio profundamente conturbado com F. Scott, um alcóolatra notório, a frequente incompreensão sobre suas criações por parte de vários de seus médicos, e as práticas psiquiátricas misóginas às quais foi submetida.

Houve um fracasso contínuo em perceber e compreender sua própria criatividade, a subjetividade de sua experiência, assim como sua contribuição para o trabalho de seu marido.

Desenho de Zelda Fitzgerald, intitulado "Deus é a compreensão perfeita". Fonte: Biblioteca da Universidade de Princeton
Desenho de Zelda Fitzgerald, intitulado “Deus é a compreensão perfeita”. Fonte: Biblioteca da Universidade de Princeton

Mesmo que Zelda nunca tenha deixado de escrever, as imposições do marido a fizeram voltar-se para a pintura. Ela usava pastéis, aquarelas, tintas a óleo e guache. Encontrou inspiração nas paisagens da Itália, do Sul da França e do Sul dos Estados Unidos, assim como nos panoramas urbanos de Nova York e Paris, lugares onde viveu. Com seu fascínio por flores, pelo corpo humano e por cidades, seus quadros transmitem energias vibrantes e impulsos modernistas similares àqueles encontrados em Georgia O’Keefe, Picasso e Charles de Muth.

Ao longo da última década, vimos uma onda de narrativas ficcionais da vida e do casamento de Zelda Fitzgerald. O romance premiado de Gilles Leroy, Alabama Song, por exemplo, foi em grande parte escrito sob o ponto de vista de Zelda, durante sua internação no hospital Highland, em 1940. A jornalista francesa Agnès Michaux escreveu seu romance Zelda (2006) na terceira pessoa. Quatro outras narrativas ficcionais da vida de Zelda e F. Scott Fitzgerald foram publicadas por autores estadunidenses em 2013.

Meia noite em Paris (2011), de Woody Allen, parece ter acendido um novo interesse em retratar Zelda no cinema. Enquanto Allen se contentou em apresentá-la como uma Southern Belle mimada e meio resmungona (interpretada pela atriz Alison Pill), a série Z: the beginning of everything (adaptação do romance Z: A Novel of Zelda Fitzgerald de Therese Anne Fowler), produzida pela Amazon e estrelada por Cristina Ricci, oferece um retrato mais completo de nossa heroína, apesar das críticas ao sotaque sulista da protagonista.

Qual a razão desse fascínio por Zelda Fitzgerald e sua união com um dos autores mais celebrados da História? Algo de mítico existe no padrão de suas vidas: o excesso selvagem e a decadência trágica, a inocência e a juventude perdidas, o amor ardente e a loucura desregrada. Sua história é um espelho do mito de Ícaro: tente voar alto demais e despencará até estatelar-se no chão.

Talvez seja esse o preço que se paga ao ir longe demais. A vida de Zelda e F. Scott acena para a queda inevitável das grandes figuras heroicas. E talvez a história de Zelda dialogue também com o momento cultural no qual aumenta o ímpeto a para que mulheres criadoras recebam o mesmo reconhecimento que os homens.

Quadro de Zelda Fitzgerald. Sem data. Fonte: Biblioteca da Universidade de Princeton.
Quadro de Zelda Fitzgerald. Sem data. Fonte: Biblioteca da Universidade de Princeton.

Deborah Pike


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Josie Nascimento


Tradutora.



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