Após 150 anos, o quebra-cabeça de Alice continua sem solução


Alice    carroll    
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Escrito por: Dimitra Fimi
Traduzido por: Caroline Bigaiski

Parte do motivo é que as Aventuras de Alice no País das Maravilhas foi um divisor de águas da literatura infantil. Antes disso, livros e histórias para crianças costumavam ter um foco rigoroso em educação e aprimoramento moral. A maioria dos livros servia para ensinar a criança a ser boazinha em vez de entreter ou provocar a imaginação. Lewis Carroll mudou isso.

Ilustração de Sir John Tenniel.
Ilustração de sir John Tenniel.

Alice sabe-tudo

Em vez de instruir a criança, Carroll coloca no centro da narrativa uma menina jovem que ensina adultos em um mundo em que tudo é às avessas. Alice dá dicas de boas maneiras a torto e a direito e repreende os habitantes do País das Maravilhas por serem rudes e malucos. Ela sabe de tudo — adultos não são confiáveis ou lógicos e são um pouquinho loucos também. Foi uma reviravolta completa na forma como crianças e adultos haviam sido retratados na literatura até então.

O resultado é hilário: o humor irreverente do livro apela para a natureza anárquica das crianças. Por exemplo, respeitados versos da época são bruscamente parodiados. O Chapeleiro Louco recita: “Brilha, brilha, morceguinho! Quero ver você brilha!”, enquanto Alice apresenta uma versão cômica de “Os confortos do velho e como ele os ganhou”, de Robert Southey.

Carroll usa a narrativa para zombar do estilo vitoriano de educação. Alice usa palavras longas que não entende porque acha que são importantes. Na escola, o Jabuti de Mentira aprendeu “língua tortuguesa e aguografia” e os “diferentes ramos da Aritmética: ambição, distração, irrisão e enfeamento”. Trocadilhos, absurdos, humor, paródia e troca de papéis: esses são os ingredientes essenciais dos livros infantis de hoje, graças à Carroll.

(Mal-)interpretando o mistério

As razões para o sucesso de Alice fora do Reino Unido são um pouco mais complexas, mas podem ter relação com a percepção da inerente qualidade britânica do livro. O País das Maravilhas tem uma rainha, festas de chá, jogos de croqué e serviçais. A visão nostálgica de uma sociedade vitoriana romantizada é, certamente, parte do apelo. Esses são alguns dos mesmos ingredientes que fizeram Downton Abbey ou a série Harry Potter tão bem-sucedidos ao redor do mundo.

Ilustração de Sir John Tenniel.
Ilustração de Sir John Tenniel.

Mas, talvez ainda mais intrigante, há uma persistente sugestão de que o livro tem um lado mais obscuro. Já foi sugerido várias vezes que as muitas comidas mágicas que Alice consome no País das Maravilhas podem aludir à drogas. De fato, ela come parte de um cogumelo mágico enquanto conversa com uma lagarta que fuma narguilé. Isso é uma interpretação da cultura pop, baseada na forma como as sequências surreais do livro foram vistas por outras gerações — principalmente a cultura hippie dos anos 1960 e 1970 — sem qualquer evidência concreta. Mas é uma leitura que continua até hoje, como demonstrado nas primeiras cenas de Matrix.

Talvez mais preocupante sejam as dúvidas e aspersões lançadas no interesse de Lewis Carroll em Alice Liddell, a menininha para quem a história foi contada inicialmente. Lewis de fato tirava fotos de meninas jovens, o que pode parecer suspeito nos dias de hoje apesar de estudos recentes terem demonstrado que tais suspeitas são infundadas. Mas os boatos não desapareceram.

Sempre um quebra-cabeça

Outros leitores vão mais fundo ainda no texto, à procura de significados. Em uma leitura, o ambiente onírico da história é uma metáfora para uma viagem pessoal interior em busca dos desejos incontroláveis do subconsciente. Também, Alice ameaça comer muitos dos personagens do País das Maravilhas, talvez retratando o estágio oral do desenvolvimento psicossexual de Freud. Continuamente perguntam a ela: “Quem é você?”, ao que Alice nem sempre tem uma resposta clara.

Ilustração de Sir John Tenniel.
Ilustração de sir John Tenniel.

Pode também ser uma alegoria ao tumultuoso processo de crescimento, representado por Alice literalmente acordando para a realidade no fim da história. A busca por um sentido profundo é ainda mais cativante por conta da aparente falta de significado dos encontros estranhos e absurdos de Alice.

No final, Alice no País das Maravilhas é um exemplo maravilhoso de um “texto aberto” — um texto que pode significar o que você quer que ele signifique, dependendo de sua perspectiva. Tornou-se folclore, um meme que amamos reproduzir. É uma história ambivalente que aceita inúmeras interpretações. Contos de fadas sobrevivem porque são versáteis: significam coisas diferentes em contextos diferentes. Alice no País das Maravilhas tornou-se uma espécie de conto de fadas moderno, e sem dúvida continuará a ser adaptado e interpretado por muitos anos.

Dimitra Fimi


Docente de Língua Inglesa na Cardiff Metropolitan University.

Link do artigo original.



Caroline Bigaiski


Tradutora.



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