Estudo: Você já agiu como um personagem?


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Escrito por: Gregory Currie
Traduzido por: Murilo Jardelino

Quem acredita nos prazeres da leitura ficará feliz em saber que há evidências de que ler ficção faz muito bem à saúde. Em um artigo publicado na revista acadêmica Trends in Cognitive Science (Tendências da ciência cognitiva), o psicólogo e romancista Keith Oatley expõe sua tese, argumentando que a ficção, especialmente a literária, é algo positivo para nossas vidas.

Há muito tempo — desde o humanismo ecumênico, adotado pelo dr. Samuel Johnson no século 18, até as ideias defendidas ferozmente por Frank Raymond Leavis, crítico literário, no século 20 — defende-se que a literatura faz bem às pessoas. Contudo, se no passado a única evidência considerada necessária era o julgamento e a sensibilidade da crítica, hoje agradecemos a Oatley e outros psicólogos por exigirem provas mais concretas.

É difícil comprovar que a literatura nos torna pessoas melhores. Não basta apenas verificar se as pessoas que leem ficção frequentemente são, em média, mais concentradas, prestativas, observadoras e, talvez, mais bem-sucedidas do que as outras. Há muitas outras explicações, inclusive a ideia óbvia de que as pessoas que leem especialmente as obras de ficção de “qualidade”, são oriundas de um contexto sociocultural mais favorável — a leitura seria muito mais consequência de suas admiráveis qualidades do que sua causa.

Oatley baseia sua afirmação em diversas evidências de suas pesquisas e de outros psicólogos, a maioria realizadas nos últimos vinte anos. Entre os efeitos relatados da leitura de ficção (e, em alguns casos, de outras ficções com narrativas envolventes, como filmes e videogames) estão respostas empáticas — alegadas pelo próprio leitor ou eventualmente demonstradas pelo sentimento altruísta após a leitura —, menor pressão de estereótipos sexuais e racistas, e a compreensão mais apurada dos estados psicológicos de outras pessoas.

Outro conjunto interessante de descobertas vem do monitoramento da ativação cerebral por meio de ressonância magnética de imagem funcional (fMRI). Sabe-se que temos a tendência de nos envolver em uma espécie de imitação reprimida das ações dos outros com os quais convivemos. Isso também acontece quando lemos sobre ações realizadas por outros: se um personagem puxa o fio de uma tomada, por exemplo, ativa-se no cérebro do leitor áreas associadas à ação de querer agarrar alguma coisa.

Muitas dessas técnicas consistem em verificar o que acontece com as pessoas logo após a leitura de um texto. No momento, há uma crença generalizada de que as pessoas podem ser “preparadas” para agir de certa maneira por um breve período de tempo, inclusive para serem mais atenciosas e sensíveis para com os outros, simplesmente pela ativação de conexões de curto prazo em seus processos mentais. É o tipo de efeito de curto prazo utilizado por vendedores e mágicos, e não representa mudanças genuínas na disposição ou no comportamento de uma pessoa — e certamente não são mudanças na personalidade ou no caráter.

 

Cuidado com o que você deseja

Oatley apresenta muitos exemplos, mas sugiro cuidado com conclusões precipitadas. Não é porque queremos acreditar que a ficção é boa que nos deixaremos persuadir de que se trata de algo simples. Se por um lado muitos dos experimentos produzem resultados interessantes, suas alegações às vezes parecem ambiciosas demais.

Oatley sugere que a leitura de um conto muda a personalidade das pessoas “significativamente”, de acordo com “sua própria personalidade”. Seria extraordinário se a simples leitura de um conto, dos bons, produzisse uma mudança significativa de personalidade — especialmente se fossem mudanças desejadas por nós. Geralmente pensamos que esse tipo de construção de caráter — se isto for realmente possível — resulta de um trabalho árduo e longo. E, em relação aos leitores mais vorazes, será que suas personalidades estão em constante estado fluido, dependendo do que leram recentemente?

O tratamento que Oatley dá a esses experimentos é construído em torno de sua teoria acerca da natureza da ficção e como ela funciona para nos educar. Ele diz que ficções são “simulações” da realidade, que ele compara por analogia aos simuladores de voo para pilotos. Da mesma forma, ele assegura que as ficções nos ajudam a conhecer as mentes das pessoas sem a necessidade de conhecê-las pessoalmente ou recriminá-las de alguma maneira.

A partir dessa analogia, levanta-se a questão: os simuladores de voo auxiliam no treinamento apenas porque seus projetistas sabem bem como os aviões funcionam e por isso os simuladores (aparentemente) funcionam perfeitamente? Não podemos supor que os escritores de ficção saibam como a mente funciona — na verdade, psicólogos como Oatley se esforçaram para entender esse funcionamento usando métodos totalmente diferentes daqueles dos romancistas. Se os autores já sabem, por que os psicólogos se preocupariam com isso?

Seria não só surpreendente, como também decepcionante, que de alguma maneira a ficção nunca tivesse transformado alguém em uma pessoa melhor. Acredita-se que certos tipos de ficção (pornografia violenta, por exemplo) são ruins para alguns. A tendência humana para imitação é um fato a ser levado em conta. Talvez esse campo de pesquisa esteja prestes a descobrir que algumas ficções são ideais para certas pessoas em determinadas circunstâncias. A descoberta de qual, quem e o quê ainda levará algum tempo.

Gregory Currie


Professor e Chefe do Departamento de Filosofia da, Universidade de York.

Link do artigo original.



Murilo Jardelino


Tradutor.



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