Bibliotecas perdidas


Achmet    Aristóteles    
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Escrito por: Claire Preston
Traduzido por: Rayssa Feu

Na última metade do século 17 o polímata inglês Thomas Browne escreveu o Musaeum Clausum, um inventário imaginário de “livros notáveis, antiguidades, imagens e raridades de vários tipos, nunca ou quase nunca vistos por nenhum homem vivo”. Claire Preston explora o catálogo extraordinário de Browne no amplo contexto de uma preocupação renascentista com tesouros intelectuais perdidos.
Thomas Browne como representado no frontispício de sua publicação póstuma Certain Miscellany Tracts (1684)
Thomas Browne como representado no frontispício de sua publicação póstuma Certain Miscellany Tracts (1684)

Em uma era de recuperação de dados, quando praticamente tudo que já foi impresso pode ser visto online — e lá está eternamente preservado —, e quando a ansiedade da vida moderna é alimentada pelo excesso de informação, devemos nos lembrar de que a perda de livros e artefatos era catastrófica até muito recentemente na história da humanidade. A grande biblioteca da Dinastia Ptolemaica, em Alexandria, foi queimada pelos romanos no primeiro século de nossa era, destruindo uma coleção lendária de sabedoria antiga cuja perda reverberou até os eruditos da Renascença. Sábios europeus dos séculos 15 e 16 eram, em meio ao surpreendente ressurgimento da escrita clássica, bem conscientes do que era irrecuperável e até mesmo desconhecido para eles.

Sir Thomas Browne (1605-1682) era um desses intelectuais. Seu vasto conhecimento em áreas diversificadas como embriologia, anatomia, ornitologia, história e literatura antigas, etimologia, arqueologia local e farmácia, além de sua participação no programa baconiano para resgatar conhecimento dos apagamentos e equívocos acumulados desde a queda do homem, tornaram-no especialmente sensível a tais perdas. Musaeum Clausum, um breve folheto, divertido e, ao mesmo tempo, melancólico, parece reunir o sentimento do início dos tempos modernos a respeito da indisponibilidade de tesouros intelectuais preciosos.

Musaeum Clausum (a biblioteca escondida) é um catálogo falso de uma coleção que continha livros, imagens e artefatos. Coleções deste tipo (e seus elaborados índices) eram um fenômeno comum principalmente entre 1500 e 1700 — e em diante. Fidalgos e toda a nobreza mantinham coleções como forma polida de comprometimento para com o conhecimento e de exibição de sua riqueza e instrução; sábios dispunham plantas, animais e minerais segundo sistemas museológicos ou “glossários” do mundo natural para registrar e organizar suas descobertas; coleções imperiais e monárquicas eram únicas, glamorosas e caríssimas: elas poderiam incluir exemplares naturais históricos, mas também bugigangas e suvenires de lugares remotos, curiosidades da arte e da natureza e itens historicamente significantes. Por exemplo, basiliscos empalhados compartilhavam o mesmo espaço com um espinho da coroa de Cristo e cocares e armas de tribos indígenas da América. Browne incorporou essa tradição colecionista e formou um catálogo de maravilhas desaparecidas.

O catálogo do museu perdido de Browne fala de fragmentação, dispersão e perda, mas também há itens cômicos e excêntricos. Dentre seus documentos estão cartas e obras de Aristóteles, Ovídio e Cícero, além de uma descrição da expedição de Aníbal por Alpes “muito mais específicas do que as de Lívio”, que pretendem contar que tipo de vinagre ele usara para partir pedras em seu caminho. Talvez o item mais significante sejam as epístolas de Sêneca a São Paulo, uma correspondência que, se existisse, responderia aos anseios de cristãos estoicos. As imagens nessa coleção demonstram uma tremenda habilidade técnica ou retratam eventos notáveis. Uma das imagens é uma “grande obra submarina” mostrando o fundo do mar Mediterrâneo e as ervas marinhas que lá crescem; outra descreve uma batalha à luz do luar entre os florentinos e os turcos; outras são “obras” que mostram paisagens incríveis e desconhecidas de neve ou geleiras e povoadas de animais árticos exóticos; há outras, ainda, que mostram o grande incêndio de Constantinopla, o cerco de Viena, o saque de Fondi e o tratado de Colônia, assim como retratos, caricaturas e até os cães do sultão Achmet. As curiosidades são o mais específico e aleatório grupo da coleção, que vão desde um ovo de avestruz gravado com uma cena da batalha de Alcácer até uma pedra úmida que cura febre, passando por um anel achado na barriga de um peixe (supostamente o anel que o Doge de Veneza usava anualmente para se casar com o mar), o corpo mumificado de um tal Padre Crispim de Toulouse e “Batracomiomaquia, ou a batalha homérica entre sapos e ratos descrita engenhosamente no osso da mandíbula de um enorme peixe lúcio”.

O catálogo de Browne é um de muitos exemplos desse gênero, o catálogo falso. Donne escreveu um; Rabelais incluiu um em A vida de Gargântua e de Pantagruel. Tipicamente, obras assim eram curiosidades descaradamente falsas, paródias de coleções que John Evelyn julgava ser nada mais que um “caos indigesto”.  Mas Browne, mesmo reconhecendo o absurdo de alguns de seus próprios itens e, claro, visando efeito cômico com alguns, provavelmente estava mais interessado na filosofia das antiguidades, do passado e do conhecimento existente ressuscitado e preservado do esquecimento e da devastação do tempo. O objetivo de Browne, parecido com o dos baconianos do início da Modernidade, era a reparação e restauração da verdade, e o Musaeum Clausum lê-se como uma evocação saudosa do que pode ter existido em uma coleção lendária como a da Bibliotheca Alexandrina.  Talvez a reprodução mais poderosa desse saudosismo não esteja em obras específicas ou homenagens aos grandes nomes da história, mas nos lamentáveis restos do Padre Crispim, “enterrado há muito tempo nas criptas dos Cordeliers em Toulouse, onde as peles dos mortos são tão secas e repuxadas, mas incrivelmente preservadas, que poderiam ser reconhecidas mesmo depois de muito tempo, com sua epígrafe Ecce iterum Crispinus [contemple Crispim novamente]”. Esse Padre Crispim, anônimo se não fosse por isso, um monge insignificante cujo nome é sua única crônica, é imortalizado pela estranha atmosfera da cripta, e não por um feito ou qualidade; sua sobrevivência como mera fisionomia, “mesmo depois de muito tempo”, é meramente um fenômeno científico, não uma homenagem a um indivíduo especial. A austera epígrafe pateticamente nos força, com sua ordem imponente, a contemplar outra vez o que nunca foi notável ou memorável, para começo de conversa. O tema favorito de Browne, aqui e em qualquer outro lugar, é a aleatoriedade da memória, e Padre Crispim, um sobrevivente aleatório do passado, é preservado somente para ser perdido de novo junto com a coleção que o contém.

Vinte anos antes, Browne havia escrito o surpreendente Urne-Buriall, uma arguição sobre as práticas mortuárias. Nessa obra ele indaga por que possuímos registro do epitáfio do cavalo de Adriano, mas não do próprio Adriano, ou, ainda, se os melhores homens são sequer lembrados, “ou será que há mais pessoas notáveis esquecidas do que as que continuam sendo lembradas pela história?” Essa eterna sensação de que muito foi esquecido e muito pouco ainda é lembrado movia Browne e outros sábios do início do Modernismo, que estavam conduzindo uma operação de resgate para restaurar a propriedade intelectual.

 

Claire Preston


Claire Preston é professora de Literatura Moderna da Universidade de Birmingham. Seus livros incluem Bee.

Link do artigo original.



Rayssa Feu


Tradutora.



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