A ficção pode ajudar os estudantes a compreender o mundo


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Escrito por: Melissa Tandiwe Myambo
Traduzido por: Valeska Silva

O mundo real é com frequência insuportavelmente complicado. A literatura pode ajudar. Isso é verdade também nas universidades: cursos de literatura comparada oferecem aos alunos novas percepções em suas disciplinas de escolha ao apresentar perspectivas novas e variadas.

Alguém que estuda Ciências Políticas pode realmente aprender sobre o terror de viver sob o jugo de um ditador? Talvez a leitura de A festa do bode, de Mario Vargas Llosa, um magnífico romance histórico sobre o regime tirânico de Trujillo na República Dominicana, ajude. É pouco provável que os alunos se esqueçam das atordoantes intrigas políticas da Guerra Fria que inicialmente levaram os Estados Unidos a apoiar Trujillo e depois implementar sanções contra ele.

Em Estudos Regionais os alunos aprendem sobre a política dos governos pós-coloniais. O romance Um homem popular, de Chinua Achebe, publicado em 1966, mostra a rapidez com que o zelo revolucionário pós-independência se instalou quando a elite pós-colonial — gananciosa e corrupta — tomou as rédeas do poder das mãos do colonizador para depois estrangular ainda mais a população.

O ensino dessas e de outras matérias — História, Economia, Sociologia, Geografia — se amplia com a inclusão de romances, contos e filmes de ficção. É benéfico aos alunos aprender os métodos da leitura crítica, inerentes aos estudos literários. Neste artigo vamos explorar por que isso acontece, com atenção especial ao importante e polêmico campo dos estudos do desenvolvimento internacional.

Por que o desenvolvimento é mais que economia

Os Estudos do Desenvolvimento Internacional pedem um componente literário precisamente por serem uma matéria tão ideológica e normativa. “Desenvolvimento” é um termo que em si deveria exigir uma avaliação ideológica. É mais do que economia. Isso está claro nos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio e de Desenvolvimento Sustentável da ONU, que reiteram que o “desenvolvimento” também se concentra na evolução cultural, como é o caso da equidade de gênero por meio do empoderamento feminino.

Contudo, o programa de quase todos os cursos de Estudos do Desenvolvimento Internacional possui um grande número de economistas do desenvolvimento: Amartya Sen, Joseph Stiglitz e Jeffrey Sachs. Se o professor pender um pouco mais para a esquerda, haverá trabalhos de antropólogos como James Ferguson e Arturo Escobar, ou do brilhante professor de Ciências Políticas Timothy Mitchell. Por que apenas esses? Essa é uma área na qual os livros de artes e humanidades são pertinentes, ainda assim ninguém jamais vê um romance pós-colonial nesses programas.

Isto é praticamente um crime. O desenvolvimento foi constituído como campo de estudo e área prática durante os anos de descolonização que se seguiram à Segunda Guerra Mundial. É exatamente o mesmo período que compreendeu o nascimento do que se chama hoje Literatura Pós-colonial. Mas os cursos de Estudos do Desenvolvimento Internacional raramente tocam na questão fundamental do que verdadeiramente quer dizer desenvolvimento. Desenvolver-se para o quê? Em benefício de quem? Sob a égide de quem? Essa questão, entretanto, é colocada num vasto conjunto de excelentes obras de ficção.

Tenho recomendado aos meus alunos o romance que Nuruddin Farah publicou em 1993, Gifts ,— inspirado pelo clássico da etnografia de Marcel Mauss, Ensaio sobre a dádiva. Quando o auxílio para o desenvolvimento vindo de países poderosos é doado para a Somália empobrecida dos anos 1980, uma linha tênue é ultrapassada, tanto pelo Ocidente que “doa” quanto pelos somalis que “recebem”. O livro é uma longa meditação sobre o ato na corda bamba que oscila entre doação e dominação. Certamente, meus alunos aprenderam mais nesse romance sobre a sensação da pessoa que recebe ajuda de um doador do que em qualquer das nossas leituras nas Ciências Sociais, em grande parte escritas a partir do ponto de vista do doador.

Explorando pontos de vista diferentes

Não quero sugerir que tais romances sejam substitutos para os “informantes nativos”, que são percebidos como especialistas em cultura, raça ou cenário simplesmente porque pertencem a eles. Muito pelo contrário. Eles deveriam ser lidos como literatura, que críticos literários como Mikhail Bakhtin descrevem como um emaranhado de pontos de vista concorrentes e dependentes da linguagem, que sempre luta para veicular a verdade real.

O ponto de vista pode ser um conceito mais fácil para que os alunos se apropriem da teoria de Bakhtin. É uma técnica básica de narrativa explorada em Introdução à Crítica Literária porque pode mudar a forma como a história é contada ou percebida. No brilhante filme Bamako, de 2006, o povo do Mali leva o Banco Mundial aos tribunais para esclarecer por que a “dádiva” venenosa da ajuda para o desenvolvimento deixou o país com tal carga de dívidas debilitantes.

Sob a perspectiva do Banco Mundial o desenvolvimento pode significar uma coisa, mas para seus “beneficiários” significa algo bastante diferente. A arte tem o poder de veicular esse ponto de vista com um impacto visceral. Isto não é essencial para os alunos de Desenvolvimento Internacional que têm por objetivo ajudar o “outro” a “se desenvolver”?

Espaço para múltiplas percepções

O estado final do “desenvolvimento”, que está implícito, mas quase nunca explicitamente teorizado nos Estudos do Desenvolvimento Internacional, é a “modernidade” e o tornar-se “moderno”. Essa é uma matéria na qual a literatura e a teoria literária podem oferecer múltiplas percepções.

O maravilhoso romance de Zakes Mda, The Heart of Redness, publicado em 2005, retrata a história de uma cidadezinha contemporânea na África do Sul pós-apartheid. Nela, dois grupos de habitantes sustentam posições radicalmente diferentes sobre o que o desenvolvimento significa para eles. Significa postes de iluminação pública e um resort com cassino que trará turistas? Ou manter um estilo de vida mais “tradicional”, mais sustentável ambientalmente em detrimento de algumas comodidades “modernas”? As diferentes posições dos habitantes são também alimentadas com suas diferentes visões sobre a própria história da colonização.

Certamente, a história é essencial para compreender qualquer matéria. Por esse motivo não me restrinjo apenas à literatura pós-colonial em sala de aula. Robinson Crusoe, publicado pela primeira vez em 1719, é um excelente romance para introduzir o estudo do imperialismo britânico, um pré-requisito para a compreensão da economia cultural e global contemporânea.

Ilha de Juan Fernandez, onde viveu o marujo da novela de Defoe, Robinson Crusoe. Magasin Pittoresque 1842.

Pressionando por mudanças positivas

Em nosso mundo globalizado, as apostas não poderiam estar mais altas. Muitos de nossos alunos acabarão por elaborar políticas, alocar auxílios e dirigir a economia global. Eles mudarão o mundo. A literatura e o pensamento humanista os capacitam a mudá-lo para melhor.

Melissa Tandiwe Myambo


Pesquisador associado ao Fulbright-Nehru Scholar, Centro de Estudos Indianos, Universidade de Wits, Universidade da Califórnia, Los Angeles.

Link do artigo original.



Valeska Silva


Tradutora.



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