Lewis Carroll e a caçada ao salapão


Alice    Alice através do espelho    
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Escrito por: Edward Wakeling
Traduzido por: Liliana Hage

Em 1876, Lewis Carroll publicou seu mais longo poema, uma fábula épica fantástica que narra as aventuras de um inusitado grupo formado por nove homens e um castor. Edward Wakeling, estudioso da obra de Carroll, apresenta A caçada ao salapão.

Ilustração do livro The Hunting of the Snark.
Ilustração do livro A caçada ao salapão.

 

Nota inicial: O Instituto Mojo lança seu primeiro projeto no catarse: a nova edição de As aventuras de Alice, que contém os dois livros de Alice, no país das Maravilhas Através do espelho, e o poema surreal raríssimo A caçada ao salapão. Confira as recompensas e aproveite para apoiar o projeto de livros que geram livros.

 

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Embora tenha se tornado famoso principalmente como o autor de As Aventuras de Alice no País das Maravilhas (1865) e Através do Espelho (1871), Lewis Carroll — pseudônimo de Charles Lutwidge Dodgson, matemático do Christ Church College, em Oxford, Inglaterra — foi também um ávido leitor e autor de poesia. Era grande apreciador dos poetas vitorianos, como Alfred Tennyson e Christina Rossetti. Seus poemas tinham temas variados — alguns eram puro humor nonsense; outros, recheados de significados ocultos; ou, ainda, discorriam sobre assuntos mais sérios, como o amor e a vida. O mais famoso deles é provavelmente Jabberwocky (Teyú Yaguá, na tradução do Instituto Mojo), que traz palavras inventadas por Carroll já em seu primeiro verso “Twas brillig, and the slithy toves…”, seguindo cheio de neologismos, como os termos chortle e galumph, mais tarde incorporados à língua inglesa, com os significados de “rir disfarçadamente” e “galopar de forma triunfante”, respectivamente. Tamanho nonsense faz tanto sucesso hoje quanto à época de sua publicação. Já a poesia mais séria de Carroll, é preciso admitir, costuma ser inferior aos seus versos engraçados, muitas vezes exagerando no sentimentalismo. Entre 1860 e 1863, Carroll contribuiu com pelo menos uma dúzia de poemas para a College Rhymes, publicação semestral das universidades de Oxford e Cambridge, que chegou a ser editada por ele próprio durante certo período. Em 1869, compilou seus poemas revisados em uma única publicação. Muitos desses já haviam sido publicados anteriormente de forma isolada, mas o livro inclui também um poema novo, Phantasmagoria, que deu nome à obra.

Um poema em particular se destaca de todos os outros que Carroll escreveu, tendo inspirado paródias, continuações, adaptações musicais e diferentes interpretações. Trata-se de um épico em estilo nonsense, escrito numa fase em que suas convicções religiosas eram confrontadas com a grave doença de seu primo e afilhado, Charlie Wilcox, que veio a morrer de tuberculose. Embora fale de morte e perigo, o poema é recheado de humor e de ideias excêntricas, e — um detalhe curioso, — foi escrito de trás para a frente. Após passar uma noite inteira à beira do leito do primo doente, Carroll caminhava pelas colinas próximas à cidade de Guilford, quando um verso lhe veio à mente: “For the Snark was a Boojum, you see!”. Alguns dias depois, completou-se a estrofe, que é a última do poema. O restante da obra foi composto ao longo de seis meses, resultando em 141 estrofes, divididas em oito cantos, que Carroll chamou de “fits”, palavra que, em português, pode significar também “ataques” ou “surtos”.

Sumário do poema.
Sumário do poema.

 

Carta náutica.
Carta náutica.

O poema narra uma expedição náutica em busca de uma misteriosa criatura, chamada por Carroll de Snark (salapão, na tradução do Instituto Mojo). A tripulação é capitaneada por um mensageiro e inclui ainda um padeiro, um banqueiro, um advogado, um juiz de bilhar, um engraxate, um chapeleiro, um corretor e um açougueiro, acompanhados por um castor. Tendo em mãos um mapa marítimo que está em branco, eles chegam a uma ilha e lá tem início a caçada ao salapão. A perseguição é muito perigosa, pois, embora tais criaturas sejam em princípio inofensivas, as que fazem parte de uma subcategoria chamada por Carroll de boojum, são ferozes e podem até matar. A questão que se coloca é: teria o poema algum significado? Carroll jamais admitiu essa hipótese, garantindo que se tratava de puro nonsense, o que não evitou, porém, constantes especulações sobre o assunto. De certo modo, o poema trata dos relacionamentos que acabam surgindo entre os tripulantes e da interação observada nessa mistura tão heterogênea de personagens. Todos se comportam de forma estranha, alguns escapam por pouco e um outro simplesmente desaparece nas garras de um boojum.

Ilustração do livro The Hunting of the Snark.
Ilustração do livro A caçada ao salapão.

Editado no Brasil como A caçad ao salapão, o poema tem o título original de The Hunting of the Snark, e o subtítulo “An Agony in Eight Fits”, ou “Uma agonia em oito surtos”. A ideia original era produzir um conjunto de versos a serem incluídos em uma de suas histórias infantis, mas o poema acabou ficando longo demais e ganhou uma publicação própria. Não por acaso, Carroll lançou o livro em 1º de abril de 1876. No entanto, existem exemplares especiais, com dedicatórias autografadas a seus amigos, datados de 29 de março. A edição original foi lançada em capa dura na cor bege, mas Carroll também mandou encadernar cópias especiais em vermelho, azul, verde e branco, todas com detalhes em dourado, para presentear amigos e familiares. O livro foi dedicado a uma das amigas de Carroll, Gertrude Chataway. Em sua homenagem, o original em inglês inclui um duplo acróstico, com a primeira letra de cada verso e a primeira sílaba de cada estrofe formando o nome dela — Gert, Rude, Chat, Away.

O livro traz também ilustrações de Henry Holiday (1839-1927), artista, escultor, vitralista e ilustrador. Nove ilustrações acompanham o poema. O artista produziu ainda uma décima, representando o Snark, que, no entanto, foi recusada por Carroll, pois ele fazia questão de manter a aura inimaginável da criatura.

Ilustração do livro The Hunting of the Snark.
Ilustração do livro The Hunting of the Snark.

O poema tem uma dívida com Jabberwocky. Algumas das palavras inventadas naqueles versos aparecem novamente em A caçada ao salapão, e sua origem é explicada por Carroll no prefácio. Por exemplo, frumious é uma palavra-valise formada pela junção de fuming e furious, ambas descrevendo alguém enfurecido. Algumas criaturas imaginárias de Carroll também reaparecem nesse poema, como, por exemplo, o pássaro Juju e o terrível Bandersnatch (similar ao Curupira).

A caçada ao Snark caiu nas graças do público e teve várias reedições. Mais de 20 mil cópias foram vendidas enquanto Carroll era vivo. O poema foi incorporado ao compêndio da poesia cômica de Carroll publicado em 1883 com o título de Rhyme? And Reason? (“Rima? E razão?”, em tradução livre). Desde então, já foi ilustrado por diversos artistas e traduzido para inúmeros idiomas — e não costuma ficar esgotado por muito tempo. Muitos dos seus leitores memorizam e recitam o poema, e há até clubes de leitura dedicados ao Snark. Existe algo de atemporal nesses versos que os torna atuais até hoje, desde 1876.

Edward Wakeling


Edward Wakeling é membro de longa data da Lewis Carroll Society. Escreveu extensamente sobre Carroll nas últimas três décadas. Entre suas publicações está a primeira edição integral de “Diários de Lewis Carroll”, em 10 volumes. Escreveu sobre outros assuntos relacionados a Carroll, como fotografia, letras, matemática, quebra-cabeças, jogos e lógica. Reconhecido estudioso e colecionador, é frequentemente chamado a contribuir em conferências, exposições e programas de televisão em todo o mundo. Visite seu site.

Link do artigo original.



Liliana Hage


Tradutora.



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