Descrição
Leia um trecho:
— Deixei o espectro de seus dons finalmente descansar com uma mentira — ele começou de repente. — Jovem? Quê? Eu disse uma jovem? Não! Ela não faz parte da história, absolutamente. Elas, quero dizer, as mulheres, ficam fora disso. Ou pelo menos deveriam. Devemos ajudá-las a se manterem naquele lindo mundo que é só delas, mesmo que o nosso piore exatamente por essa razão. Ah, ela devia ter ficado de fora disso. Eu podia ouvir o cadáver desenterrado do sr. Kurtz dizendo: “Minha Prometida”. Nessa hora você teria percebido claramente o quanto ela estava deslocada dali. E a grande testa do sr. Kurtz! Dizem que o cabelo às vezes continua crescendo, mas aquele… hã… espécime era de uma calvície impressionante. A natureza havia tocado em sua cabeça e, vejam, era como uma esfera, uma bola de marfim. Ela o havia acariciado e — bang! — drenado tudo. Ela o havia tomado, amado, abraçado, entrado em sua corrente sanguínea, consumido sua carne e lacrado sua alma para si por meio de cerimônias inconcebíveis de iniciação diabólica. Ele era seu favorito: mimado e mal-acostumado. Marfim? Acho que sim. Montes de marfim, pilhas de marfim. A velha cabana de barro estava prestes a explodir de tanto marfim. Parecia impossível que sequer uma presa, acima ou abaixo do solo, em todo o continente, tivesse escapado. “A maior parte é fóssil”, observou o Gerente, desdenhoso. Não era mais fóssil do que eu, mas chamavam de fóssil quando as tiravam de sob a terra. Parecia que aqueles negros às vezes enterravam as presas, mas era evidente que não haviam enterrado seu tesouro tão profundamente a ponto separar o talentoso sr. Kurtz de sua sina. Carregamos o vapor com essa carga e tivemos de fazer pilhas no convés. E assim ele nos acompanhou com prazer, pelo menos enquanto pôde, pois a gratidão por esse favor ficou gravada em seu ser até o final. Vocês precisavam vê-lo dizer “meu marfim”. Ah, sim, ele dizia. “Minha Prometida, meu marfim, minha estação, meu rio, meu…”, tudo pertencia a ele. Eu até imaginava que logo ouviria a vastidão disparar uma inacreditável gargalhada trovejante que tiraria até mesmo as estrelas de suas órbitas. Tudo pertencia a ele, mas aquilo não passava de ninharias. O importante era saber a quem ele pertencia, quantas forças sombrias disputavam o poder sobre ele. É o tipo de pensamento que nos faz estremecer por completo. Era impossível — e nem nos faria bem — tentar decifrar isso. Ele havia galgado seu lugar entre as altas castas dos demônios do continente, e digo isso literalmente. Vocês nunca compreenderiam. Seria impossível. Com solo firme sob seus pés, cercados por gente amiga que os saúdam e os reconheçam, caminhando tranquilamente entre o açougueiro e o policial, no sagrado terror dos escândalos, das forcas e dos hospícios… como imaginar uma região específica das eras primitivas onde pés humanos livres nos conduzem pela seara da solidão… a mais completa solidão, sem qualquer policial, no caminho do silêncio — completo silêncio, onde não há a voz de advertência de um gentil vizinho que sussurra qual decisão o homem comum deveria tomar? Esses detalhes fazem toda a diferença. Quando não há nada, é preciso se apoiar em sua força interior, em sua capacidade de acreditar em algo. Obviamente é possível ser tolo o bastante para se equivocar, ser tolo demais até para entender que está sendo consumido pelas forças das trevas. Acredito que nenhum tolo jamais barganhou sua alma com o diabo. Não sei dizer se isso acontece porque o tolo é tolo demais ou o diabo é diabo demais. Ou talvez a criatura seja tão tremendamente superior que não possa ser ao mesmo tempo surda e cega aos sinais vindos do céu. E então se a terra se torna meramente um lugar de espera… e se isso acaba sendo uma vitória ou uma derrota, não me arrisco a julgar. Mas a maioria de nós não é nem um nem outro. A terra é o local onde vivemos, onde nos defrontamos com visões, sons, aromas e, também — por Júpiter! —, a podridão do hipopótamo morto, por assim dizer, sem sermos contaminados. E então, percebem? Seu poder desperta a fé em sua habilidade de cavar tocas mundanas e enterrar coisas nelas… seu poder de devoção, não a si próprio, mas a algum trabalho obscuro e árduo. E isso já é difícil o bastante. Veja, não estou procurando desculpas ou explicações. Estou apenas tentando entender a… a… sombra do sr. Kurtz. Aquele fantasma neófito vindo dos confins de Lugar Nenhum me agraciou com sua impressionante confiança, antes de finalmente desaparecer por completo. Isso porque ele podia falar inglês comigo. O Kurtz original havia tido uma parte de sua educação na Inglaterra e — como ele teve a bondade de reconhecer — seus apreços permaneceram no lugar correto. Sua mãe era metade inglesa e seu pai metade francês. Toda a Europa contribuíra na construção de Kurtz e, vagarosamente, aprendi que, muito apropriadamente, a Sociedade Internacional para Banimento dos Costumes Selvagens o havia incumbido de produzir um relatório para futura referência. E, de fato, ele o havia escrito. Vi com meus próprios olhos. Eu o li. Era envolvente, vibrante em sua eloquência, mas acredito que um tanto exagerado. É minha opinião. Ele encontrou tempo para redigir dezessete páginas em letras miúdas! Mas aquilo deve ter sido antes de, digamos, seus nervos terem se degenerado e o levado a presidir certas danças à meia-noite, regadas a ritos indescritíveis que, por mais que eu relute diante das narrativas que ouvi, eram oferecidos a ele mesmo… entendem? Rituais de oferendas ao próprio Kurtz. Contudo, era uma bela obra. O parágrafo de abertura, porém, à luz da informação posterior, agora me parece sinistro. Ele começa com o argumento de que os brancos, do ponto de vista do desenvolvimento alcançado, “sem dúvida devem parecer a eles [os selvagens] seres sobrenaturais. Somos percebidos por eles como entidades poderosas” e assim por diante. “Com o simples exercício de nossa vontade podemos empreender um poder benéfico praticamente ilimitado” etc. Daquele ponto em diante ele se exaltava e me encantei. O discurso era magnífico, embora difícil de me lembrar, entendem? Tive a sensação de uma Imensidão exótica regida por uma augusta Benevolência. Aquilo me entorpeceu com entusiasmo. Havia ali um poder de argumentação alarmante, suas palavras eram palavras nobres em ebulição. Não havia dicas práticas interrompendo a mágica sucessão de frases, exceto uma espécie de nota no rodapé da última página, evidentemente rabiscada muito tempo depois, em uma caligrafia trêmula, que poderia ser vista como a explicação de um método. Era muito simples e, ao final daquele apelo emocionado a todos os sentimentos altruístas, causava um fervor luminoso e aterrorizante, como o brilho de um relâmpago no céu calmo: “Exterminar todos os selvagens!”. O curioso era que ele aparentemente havia se esquecido completamente daquele importante pós-escrito porque, algum tempo depois, quando ele aparentemente voltou a si, repetidas vezes me rogou que tomasse conta do “meu manifesto” (como se referia a ele), como se tivesse certeza de que no futuro ele teria alguma influência sobre sua carreira. O manuscrito trazia informações completas sobre todas essas coisas e, além do mais, como acabou ocorrendo, fiquei incumbido de preservar sua memória. Já fiz tanto para preservar essa memória que conquistei o direito de, caso seja minha vontade, depositá-la para seu descanso eterno na lata de lixo do progresso, entre tantos outros dejetos e, por assim dizer, todas as vítimas da civilização. Mas, entendam, não posso fazer isso. Ele não será esquecido. O que quer que ele tenha sido, não foi um homem comum. Ele tinha o poder de encantar e aterrorizar almas rudimentares a ponto de dançarem em sua homenagem. Ele também era capaz de preencher as pequenas almas dos peregrinos com desconfianças amargas. Ele tinha ao menos um amigo fiel, e conquistou uma alma neste mundo que não era nem primitiva nem maculada pelo egoísmo. Não, não posso esquecê-lo, embora eu não seja capaz de afirmar que ele fosse exatamente merecedor das vidas que perdemos para chegar até ele. Eu sentia uma tremenda falta de meu falecido timoneiro — já sentia mesmo quando seu corpo ainda jazia na ponte de comando. Talvez vocês achem um tanto estranho esse sentimento por um selvagem que não passava de um grão de areia em um Saara negro. No entanto, percebam que ele havia feito sua parte, havia manobrado. Por meses ele me serviu, me ajudou como uma ferramenta. Era uma espécie de parceria. Ele manobrava, eu cuidava dele, me preocupava com suas limitações e assim um laço sutil fora criado. Um laço cuja existência só percebi quando foi rompido. A profundidade íntima daquele olhar dirigido a mim no momento em que foi ferido ainda vive em minha memória, como um chamado fraterno e distante proferido em um momento supremo.
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